
Adérito Mendes (Água): Da calamidade à serenidade: o efeito albufeira de regularização interanual
Pode parecer ausência de sensatez afirmar que se vive um clima sócio-económico sereno no sul de Portugal no decurso de mais um período longo de seca. Mas não é. Se rebobinarmos o filme das secas dos últimos 25 anos começa-se por ver imagens de terror no início do mesmo e terminamos com um final apenas com algum sentimento de apreciação.
Nos anos 90 o Algarve era palco de situações aflitivas de falta de água nas zonas turísticas com os veraneantes a tomar banho em hotéis com água salobra e com a imprensa nacional e internacional a avisar as pessoas que tencionavam passar férias para se precaverem contra estes e outros contratempos (poluição das águas balneares). No Alentejo chegava-se a equacionar a deslocação em massa dos recursos pecuários para o vale do Tejo para poderem ter água para beber ou proceder ao abate em larga escala para evitar que fossem dizimados pela sede e desidratação. O transporte de água para abeberamento era uma constante nos caminhos e estradas rurais com a angústia de todos os dias ter que ir mais longe porque as origens habituais se iam acabando. Nos anos dois mil as pequenas albufeiras de abastecimento urbano nem água nos fundos (volume morto) tiveram para manter os peixes vivos. Os bombeiros mobilizaram todos os autotanques para o abastecimento às aldeias, vilas e cidades com os níveis de ansiedade no máximo com a iminência de fogos florestais sendo os meios os mesmos. Nas águas dos rios internacionais não se podia ter esperança porque na parte espanhola das bacias hidrográficas ainda mais severa era a situação e as obrigações da Convenção de Albufeira eram derrogáveis. A calamidade alastrava-se de sudoeste a nordeste.
Quem de hidrologia entende sabe que em Portugal não basta armazenar a água do próprio ano, ou seja, da época chuvosa para a época seca, pois que podem ocorrer dois ou três anos sucessivos com disponibilidades abaixo da média anual. Por isso as albufeiras que têm sido construídas como origens fiáveis têm capacidade interanual e não apenas intermensal. O problema recomeça quando as utilizações dessas origens aumentam em relação ao inicialmente previsto e a capacidade da albufeira se mantem inalterada ou reduzida pela acumulação de sedimentos.
Estamos em seca extrema em finais de Novembro de 2017 e nas zonas e regiões referidas, onde antes nestas circunstâncias havia sentimentos de aflição e se reclamava por soluções divinas, observa-se uma serenidade controlada, designadamente na mancha de território dominada pelo Alqueva e pelas grandes albufeiras do Algarve. E porquê? Porque as albufeiras de regularização têm esse efeito, transformando situações difíceis para as pessoas e actividades económicas, por limitações de acesso à água, em situações de normalidade, isto é, substituindo a calamidade pela serenidade. Isto é bem patente no caso do Alentejo quando ouvimos as mesmas pessoas, que há poucas décadas apenas se resignavam ou revoltavam, dizer que se a situação se tornar mais grave podem recorrer à água armazenada na albufeira de Alqueva porque podem receber água através da rede de distribuição que interliga as diversas bacias hidrográficas.
As situações mais agudas que ainda se vivem no abastecimento às populações e pecuária são do conhecimento dos responsáveis políticos e económicos destas regiões desde há longos anos. Tem havido meios financeiros para criar origens de água robustas para estas conhecidas situações e só não estão resolvidas por negligência porque se priorizaram outras opções de investimentos não urgentes que recusamos a adjectivar de momento.
Com o agravamento das alterações climáticas os efeitos da falta de água regularizada no interior do país irá acentuar ainda mais o despovoamento porque os descendentes dos poucos que vão resistindo acabam por desistir e deslocarem-se para o litoral. Só com a construção de armazenamentos de água interanuais se garante o funcionamento sereno das comunidades urbanas e rurais, assegurando água de socorro às culturas e animais nas situações excepcionais. Por quanto mais tempo os nossos políticos vão ficar de consciência tranquila porque apenas se preocupam pelo curto prazo?
Adérito Mendes, engenheiro civil do ramo de hidráulica, formado em 1976 pelo Instituto Superior Técnico, é pós-graduado em “Alta Direcção em Administração Pública” e especialista em “Hidráulica e Recursos Hídricos”. Foi Coordenador Nacional do Plano Nacional da Água – 1998/2002 e 2009/2011 e autor de dezenas de estudos, projectos e pareceres relacionados com recursos hídricos. Começou a carreira como técnico superior na Direcção Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, em 1977, passou pela Direcção Geral dos Recursos Naturais. Além de profissional liberal na área de estudos, projectos e obras hidráulicas, foi Director de Serviços de Planeamento do Instituto da Água-1988-2011, assessor de serviços de Comissão Directiva do POVT-QREN e assessor da presidência da Agência Portuguesa do Ambiente. Exerceu ainda as funções de docente do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa-2002-2014.