
Colunista Adérito Mendes (Água): Caudais do Tejo. Mais uma acha para a fogueira
A bacia hidrográfica do rio Tejo, com 80.600 km2 de área, não é a maior das bacias partilhadas com Espanha. Esse lugar cabe à bacia do rio Douro com 97.600 km2. Mas as áreas em território português têm posição inversa, o Douro com 18.600 km2e o Tejo com 24.800 km2, as quais correspondem apenas a 19% e 31% das áreas totais. Todavia, a maior dependência das quantidades de água são sempre os troços de jusante por razões ecológicas.
Tudo o que se diga em desmérito da gestão das águas pelos espanhóis e que afectam as populações portuguesas é pouco, mas também não o é menos se os destinatários forem as autoridades hídricas portuguesas. Esta avaliação não é gratuita, é tão somente o resultado de mais de 30 anos a lutar contra posições titubeantes, erróneas e inseguras no seio da Comissão Luso-espanhola.
Por que é que, em vez de se andar a consumir tempo e energia à volta de caudais mínimos e a rematar ao lado, não há coragem para negociar uma verdadeira partilha de caudais entre os três interessados, as duas economias, espanhola e portuguesa, e o rio Tejo para este funcionar como rio?
Também não vale apenas ter ilusões. Quem está a gerir os caudais do rio Tejo são as hidroeléctricas. Lançam os caudais que mais lhes convêm, chegando ao ponto de inverterem o regime natural de caudais, lançando elevados caudais no verão, por causa do arrefecimento/frio que provoca os picos de procura nos períodos de maio calor, e reduzidos ou nulos nos períodos intermédios, outono e primavera, como está acontecer.
Portanto, enquanto não se quantificarem os regimes ecológicos a que ambos os países se devem submeter e controlar, que em alguns momentos até podem determinar caudais nulos em alguns dias de alguns anos, não é possível negociar uma partilha do que sobra para o desenvolvimento económico.
Mas quais são os políticos, portugueses ou espanhóis, que tem coragem de enfrentar as poderosas empresas hidroeléctricas, como a EDP e a Iberdrola? Pois que é disso que se trata e não vale a apenas andar com rodriguinhos!! Claro que quando lhes foram atribuídas as concessões de utilização privada de bens públicos as questões ecológicas/ambientais não eram tão jornalísticas. Mas os tempos são outros. Se estas empresas enriqueceram por essa via está na hora de lhe exigir a responsabilidade social e retirar-lhe parte desses lucros, alterando os termos dessas concessões por interesse público e ambiental sem compensações, já que essas já as tiveram durante décadas.
Ah! A Convenção de Albufeira. Pois, pois, com essa fizemos o país andar para trás, mesmo já havendo uma lei europeia sobre esta matéria, a Diretiva quadro da água. Já tínhamos um Portugal dos pequeninos, com o acordo aceite pelos espanhóis juntámos-lhe a Convenção dos pequeninos, que não é mais que uma Convenção sem hormonas! Não aquece nem arrefece em relação à Diretiva quadro da água! Os planos região hidrográficas?! Têm 20 anos e os problemas de quantidade e de qualidade continuam! São tudo instrumentos fora de prazo de validade em relação às exigências das alterações climáticas.
Esta animosidade toda a propósito das notícias sobre os caudais do Tejo surgem ao revisitar os documentos produzidos há mais de 20 anos onde alertei por várias vezes, por escritos entregues a responsáveis máximos portugueses da gestão das águas luso-espanholas, presidentes e governantes, mas que, por não interessarem à ascensão desses protagonista, deles fizeram resíduos.
Como algumas das conclusões desses documentos dos primeiros anos da década de 2000 se mantêm atuais reproduzo aqui alguns excertos, para memória futura.
“Procura de água e regime de caudais:
Produção de energia | Captações urbano-turísticas | Captações hidroagrícolas
Enquadramento e antecedentes
Nas Convenções em vigor não está estabelecida qualquer partilha volumétrica das águas geradas nas Regiões Hidrográficas, ou por não ser conveniente para ambos os países ou por não ter sido possível ou porque demoraria muito tempo ou….
Esta circunstância tem permitido a qualquer dos países avançar com novos projetos de usos intensivos da água sem que a quantidade disponível seja encarada como um factor limitante à sua concretização, gerando à posteriori processos de conciliação casuística de desfecho duvidoso para os ortodoxos dos procedimentos convencionados.
Contudo, há que distinguir as situações das regiões hidrográficas em que os recursos são abundantes, ou suficientes a longo prazo (Minho, Lima, Douro), das que já estão muito pressionadas (Tejo) ou mesmo que já são classificadas como zonas de escassez com tendências para a desertificação (Guadiana), segundo as conclusões dos cientistas que estudam os efeitos das alterações climáticas.
Com a necessidade de cumprir os compromissos sobre alterações climáticas assiste-se a uma procura acelerada da água para produção direta de energia como origem renovável ou para complementar e rentabilizar os investimentos da produção eólica. Outra procura de utilização intensiva da água emergente para o mesmo fim, mas de forma indirecta, é a ânsia agrícola de produzir cereais regados e outras matérias vegetais para a produção de biocombustíveis, procurando alguns agricultores assim recuperar os rendimentos que tem vindo a perder nas últimas décadas.
Não menos relevantes parecem ser os grandes investimentos em empreendimentos urbano-turísticos com vastas áreas verdes para fins recreativos, designadamente os campos de golfe, em zonas onde a escassez de água é uma característica climática marcante.
Quer as utilizações consumptivas quer as não consumptivas a que nos referimos têm como resultado final a alteração acentuada do regime de caudais.
Em todos os casos considerados, e em presença de uma intensificação da sazonalidade decorrente das alterações climáticas, haverá uma tendência para regimes de caudais cada vez mais descolados do regime natural cujas consequências sobre o funcionamento ambiental da rede hidrográfica a das zonas costeiras está longe de ser percebida.
Serão porventura os aproveitamentos hidroeléctricos os maiores perturbadores do regime de caudais na medida em que à medida que forem sendo criadas albufeiras de regularização inter-estacional e interanual que permitem responder aos pedidos do mercado em energia num quadro de livre concorrência onde os objetivos dos “players” são guiados por incentivos de natureza financeira fora do controlo do Estado.
Questões emergentes e perspectivas de evolução
A questão central que as matérias atrás abordadas coloca é saber se os objetivos de natureza económica sobrelevam sobre os ambientais. Isto é, ambos os países ibéricos estão abrangidos pelo processo europeu de desenvolvimento económico-social em concorrência com outros centros económicos mundiais, onde as questões ambientais também se colocam, sendo assim levados a ter que produzir mais com menores encargos. Contudo, nestes encargos não estarão incluídos os custos ambientais de longo prazo em consonância com o princípio do desenvolvimento sustentável. É que não podemos deixar de ter presente que no extremo de cada bacia hidrográfica existem estuários de importância reconhecida e zonas costeiras muito frágeis.
Não podem deixar de ser matérias de reflexão e decisão as implicações que as alterações em curso no sistema de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica introduzirão na gestão do sistema eletroprodutor português e espanhol cujo controlo passa a ser realizado em função do mercado mas com importantes impactos nos regimes de caudais que até agora obedeciam a uma lógica de interesse público e em que os centros de decisão eram detidos pelo Estado.
Subjacente a estas questões mais gerais encontramos outras que fazem ou deveriam fazer parte da agenda dos trabalhos da CADC, não tendo sido ainda devidamente tratadas, e que importa ter em atenção, designadamente:
ü Procedimentos de avaliação de impacte ambiental dos reforços de potência de Picote e Bemposta
ü Construção de novas barragens nos afluentes do rio Douro, incluídas no plano de barragens com elevado potencial hidroeléctrico, com bombagem de água a partir do leito do Douro e conexão com a questão das bombagens de Aldeadávila para Almendra
ü Retoma do processo de Sela no rio Minho no quadro do novo Plano de Barragens Hidroeléctricas
ü Aumentos da procura de água em ambas as margens do estuário do Guadiana decorrentes de novos empreendimentos turísticos e implicações sobre o regime de exploração de Alqueva
ü Licenciamento de novas captações no Guadiana atribuído a Portugal para produção agrícola em Espanha e Portugal sob a alçada da EDIA e a sua função estratégica
ü Grandes infraestruturas industriais utilizadoras de água e produtores de águas residuais previstas para Badajoz em zona considerada de escassez e sujeita a secas prolongadas e seus efeitos sobre as garantias de água
ü Dragagens para fins navegacionais no estuário do Guadiana e instalação de transportes fluviais para fins lúdicos em albufeiras de fronteira e no rio Douro e suas implicações nos regimes de caudais
Em conclusão
As previsões mais atuais apontam para a intensificação dos usos da água nos anos mais próximos nas bacias hidrográficas luso-espanholas, cumulativamente com eventuais efeitos das alterações climáticas, derivadas da corrida às fontes renováveis hídricas para produção de energia eléctrica nas zonas de maior abundância de água e da criação de oferta turística com amenidades criadas com base na utilização intensiva de água nas zonas de clima mais seco onde imperam as situações de escassez e se fazem sentir as secas prolongadas, sem prejuízo dos efeitos atenuadores da aplicação do programa nacional para o uso eficiente da água. Quanto às previsões sobre a evolução da posição do regadio, como maior utilizador consumptivo nacional de água com a especificidade de tais utilizações se concentrarem nas épocas mais secas e estivais, a incerteza existente deve-se ao facto dos indícios não confirmados de poder vir a dar-se uma corrida dos agricultores ao aumento do regadio para produção de cereais e outras matérias destinadas à produção de bio-combustíveis. A confirmar-se essa tendência poderemos vir a estar confrontado em ambos os lados da fronteira com o aumento significativo das pressões sobre as massas de água e à intensificação da artificialização dos regimes de caudais.
A atribuição de direitos através de títulos de utilização da água em larga escala, tanto para produção de energia, direta ou indirectamente, como para garantir elevados padrões da oferta turística, fora dos Planos de Região Hidrográfica, pode criar condições de alteração significativa do regime de caudais que porão certamente em risco os objectivos de qualidade ecológica exigida pela Directiva Quadro da Água e Lei da Água.
Nestas circunstâncias também os desígnios da Convenção de Albufeira não se cumprirão e arriscamo-nos a instalar uma situação de conflito permanente entre regime de caudais, direitos de utilização e qualidade ecológica das massas de água.”
Será que vamos esperar mais 20 anos para alguém com poder para isso pegue o touro pelos cornos? Afinal temos ou não toureiros e campinos na bacia hidrográfica do Tejo!!??
Adérito Mendes, engenheiro civil do ramo de hidráulica, formado em 1976 pelo Instituto Superior Técnico, é pós-graduado em “Alta Direcção em Administração Pública” e especialista em “Hidráulica e Recursos Hídricos”. Foi Coordenador Nacional do Plano Nacional da Água – 1998/2002 e 2009/2011 e autor de dezenas de estudos, projectos e pareceres relacionados com recursos hídricos. Começou a carreira como técnico superior na Direcção Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, em 1977, passou pela Direcção Geral dos Recursos Naturais. Além de profissional liberal na área de estudos, projectos e obras hidráulicas, foi Director de Serviços de Planeamento do Instituto da Água-1988-2011, assessor de serviços de Comissão Directiva do POVT-QREN e assessor da presidência da Agência Portuguesa do Ambiente. Exerceu ainda as funções de docente do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa-2002-2014.