
Colunista José Villar (Tecnologia): Transição energética e flexibilidade no sistema elétrico
Um dos principais desafios dos sistemas energéticos atuais é a descarbonização da produção de energia, através da chamada transição energética. Embora este desafio seja complexo e necessite da combinação de muitas soluções, é inequívoco que a geração de energia elétrica com base em fontes renováveis será uma das principais componentes dentro desse conjunto de soluções. Além disso, a redução dos custos de fabrico está a tornar estas tecnologias competitivas face a tecnologias convencionais de geração de energia elétrica, com os benefícios que derivam das suas emissões nulas (quer de gases de efeito estufa, quer de outras emissões contaminantes), ou de menores emissões comparativamente com tecnologias convencionais, mesmo quando se analisa o seu ciclo de vida completo (incluindo fabrico, transporte e instalação).
A geração de energia tendo como base recursos renováveis apresenta desafios adicionais, nomeadamente a incontrolabilidade de produção devido à variabilidade do recurso (com exceção da energia hídrica). Porém, a estabilidade do sistema elétrico está baseada no equilíbrio permanente e instantâneo entre geração e consumo. Garantir a estabilidade do sistema é uma das responsabilidades principais dos Operadores das Redes de Transmissão (TSO).
Tradicionalmente, este equilíbrio tem sido garantido pela geração convencional controlável (como são as centrais hídricas, de carvão e de gás) que ajustavam a sua geração ao consumo existente em cada momento. Este ajuste era feito com um dia de antelação nos mercados de energia prévios como é o mercado diário de energia, mais perto do tempo real nos mercados intradiários, e por último em tempo real com os ajustes feitos mediante o uso das reservas e de outros mecanismos de tempo real. Porém, o incremento massivo em curso da geração eólica e solar tem várias consequências importantes no sistema elétrico e na sua estabilidade. Como já mencionado, esta geração é dificilmente controlável, e, portanto, por si só não pode contribuir suficientemente para a estabilidade do sistema, particularmente em sistemas com poucas possibilidades de armazenamento de energia. Além disso, está a substituir progressivamente as centrais controláveis mais poluentes (carvão primeiro, gás depois), reduzindo também assim a dependência destes combustíveis. Esta redução de recursos controláveis implica uma crescente necessidade de flexibilidade no resto dos recursos do sistema, que possam adaptar-se em função das suas caraterísticas, para garantir o citado equilíbrio entre geração e consumo. O conceito de flexibilidade é um conceito abrangente que se refere à capacidade dos recursos do sistema elétrico de adaptar a sua geração ou o seu consumo como resposta a sinais externos (sejam sinais de preços ou sinais de ativação) para contribuir para a estabilidade do sistema elétrico.
Estabelecer os mecanismos técnicos (avanços nas tecnologias de geração, sistemas de armazenamento, novos sistemas de controlo, melhorias nas redes de transmissão e distribuição, sistemas de gestão de energia domésticos, Home Energy Management System ou HEMS, ou a nível de edifícios, Building Energy Management System ou BEMS, etc.) e comerciais (mediante mercados ou procedimentos regulados) que permitam explorar adequadamente a flexibilidade potencial do sistema é um grande desafio que está a ser abordado atualmente por todas as partes envolvidas: fabricantes de tecnologia, agentes de mercado, consumidores, operadores de mercado e de redes, e reguladores. Além disso, como muitas dessas fontes de flexibilidade estão ligadas às redes de distribuição, é essencial garantir que a sua contribuição para a estabilidade do sistema seja feita sem pôr em perigo a segurança e normal operação das redes onde estão ligadas, responsabilidade dos Operadores das Redes de Distribuição (DSO).
Neste contexto de mudança para um sistema mais distribuído e flexível, o INESC TEC está envolvido em vários projetos relacionados com a exploração das flexibilidades do sistema. Um destes é o projeto em curso EU-SysFlex, um projeto ambicioso financiado pelo programa europeu H2020, que inclui TSO, DSO, universidades e centros de investigação entre os seus parceiros, e que tem como principais objetivos identificar as necessidades de flexibilidade do sistema para garantir a sua estabilidade num cenário de alta penetração de fontes de geração renováveis, e desenhar os mecanismos de mercado e regulação necessária para fornecer esses serviços com todas as fontes possíveis.
José Villar é investigador sénior do Centro de Sistemas de Energia do INESC TEC desde 2017 e atual responsável pela área de Electricity Markets que se dedica à modelização e regulação de mercados de eletricidade num contexto de transição energética para um sistema descarbonizado. Doutorado pela “Escuela Tecnica Superior de Ingenieria-ICAI” da “Universidad Pontificia Comillas” (Madrid) em 1997, antigo membro do “Instituto de Investigación Tecnológica -IIT” da mesma universidade onde foi subdiretor de 2004 a 2016, e Professor Associado na mesma universidade até 2017. Tem participado em mais de 50 projetos de investigação com a indústria e com administrações, e é coautor de mais de 90 artigos de investigação em revistas e conferências internacionais. As suas áreas de interesse centram-se na modelização e regulação dos mercados de eletricidade e no planeamento estratégico do sistema elétrico no atual contexto de transição energética.