Colunista Peças Lopes (Energia-Tendências): Ameaças e oportunidades do surto de Covid-19 para a transição energética
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Colunista Peças Lopes (Energia-Tendências): Ameaças e oportunidades do surto de Covid-19 para a transição energética

O surto de Covid-19 provocou em todo o mundo uma redução da atividade económica, sendo bem visível o impacto que que tal provocou em Portugal. A redução da atividade económica em Portugal traduziu-se nomeadamente numa redução significativa do consumo de energia elétrica, sendo que, se comparamos a primeira semana de março com a última do mesmo mês, ocorreu uma redução do consumo de energia superior a 15%. 

O diagrama de cargas semanal apresenta quedas superiores a 1000 MW nos períodos de maior consumo, quando se compara os dois períodos já referidos. Também os consumos de eletricidade nos períodos noturnos têm apresentado reduções significativas, conduzindo a que rede elétrica tenha que ser explorada com tensões muito elevadas que têm obrigado o Operador do Sistema a retirar linhas de serviço para reduzir a geração de potência reativa capacitiva. Esta situação é semelhante em toda a Europa, com a Espanha e a Itália a terem reduções de consumo de eletricidade já superiores a 25%.

A redução da atividade económica e a redução do tráfego aéreo e rodoviário provocou também uma forte redução do consumo de petróleo, tendo sido um dos principais motivos da descida no preço do petróleo (Brent) para valores próximos dos 20 USD/barril, arrastando na queda o preço do gás natural para valores abaixo dos 6 USD por MMBtu, em resultado de um também menor consumo deste combustível fóssil.

Estas reduções de consumo de combustíveis fósseis têm, no curto prazo, um natural impacto positivo no ambiente, devido à redução do volume de emissões de CO2, mas, contudo, importa relevar que esta situação é transitória e são várias as ameaças para o médio o longo prazo que se seguirão.

Todo este cenário de redução do consumo de energia e de consequente redução dos preços dos combustíveis fósseis devido ao excesso da oferta, a que se soma a disrupção nas cadeias de fornecimento de componentes para os sistemas de conversão de energia renovável em eletricidade, devido à forte redução da atividade industrial nestes domínios, irá provocar um abrandamento no investimento em instalação de novos sistemas de conversão eólica e solar fotovoltaica em eletricidade, ameaçando assim o ritmo da transição energética, que se pretende continue célere.

De referir que também o crescimento da mobilidade elétrica está fortemente ameaçado pelo duplo facto de 1) os combustíveis fósseis apresentarem uma redução significativa no seu preço, o que retira transitoriamente competitividade à solução de tração elétrica, e 2) de haver uma redução na produção de baterias e os outros componentes do veículo elétrico, em resultado da quebra de produção industrial neste domínio, em particular na China.

Há, pois, que continuar a promover a exploração das energias eólica, solar fotovoltaica, geotérmica, biomassa e biogás para a produção de eletricidade e promover o desenvolvimento do vetor energético hidrogénio, desde que associado a energias renováveis para a sua produção.

É importante nunca esquecer que o sistema elétrico de potência será a peça chave do desenvolvimento futuro das economias, e será ainda mais crucial para o desenvolvimento do planeta, num cenário de transição energética que queremos continue a desenvolver-se. É, pois, importante que o sistema elétrico assegure níveis de resiliência e qualidade de serviço (continuidade de serviço incluída) elevados, e que a pandemia pode transitoriamente ameaçar, por falta de suficientes recursos humanos qualificados para garantir a robustez de operação do sistema a nível de centros de despacho e de capacidade de reparação de avarias e de manutenção de equipamentos.

O conjunto de ameaças atrás referidas podem alavancar um conjunto de oportunidades que devem ser exploradas para evitar comprometer a transição energética. É, pois, importante reforçar desde já uma estratégia, associada a políticas públicas, que permita manter a transição energética no rumo que lhe definimos, tudo fazendo para que esta transição faça parte do pacote de estímulos a uma economia verde, de que necessitamos para os próximos meses e anos, ultrapassada que esteja a crise de saúde pública.

Há, pois, que continuar a promover a exploração das energias eólica, solar fotovoltaica, geotérmica, biomassa e biogás para a produção de eletricidade e promover o desenvolvimento do vetor energético hidrogénio, desde que associado a energias renováveis para a sua produção. O desenvolvimento do setor elétrico assente na utilização massiva de fontes de energia renovável variáveis no tempo exige o desenvolvimento de estratégias de sensorização, supervisão e controlo avançado, envolvendo os conceitos de rede elétrica inteligente, associadas a novas arquiteturas de mercado, sendo necessário promover mais rapidamente uma regulação e uma regulamentação mais ambiciosas para permitir que tal aconteça rapidamente.

A nível Europeu é fundamental que se desenhe um roteiro para a recuperação económica da União Europeia, devidamente integrado com o Green Deal, devendo a aposta na transição energética ser um dos pontos chave da estratégia de resposta à situação criada pelo coronavírus. O Green Deal deverá ter ainda uma forte articulação com o programa Horizonte Europa que financiará a investigação na União Europeia no pós 2020.

A necessidade de recursos humanos altamente qualificados para o setor da energia deve ser uma das preocupações das futuras políticas a desenvolver de forma a garantir que existem recursos humanos para gerir e manter um sistema elétrico, caraterizado por uma elevada complexidade e onde as competências das áreas científicas dos sistemas de potência, da informática e computadores e sistemas de comunicações são fundamentais.

A Investigação, o Desenvolvimento e a Inovação no domínio da utilização das energias renováveis para a produção de eletricidade e a sua integração harmoniosa no sistema elétrico devem ser aceleradas com políticas públicas que financiem este tipo de projetos, cobrindo toda a gama de TRL, de forma a disponibilizar soluções eficientes e robustas de que a transição energética necessita nos próximos anos.

Sabemos das ciências sociais que as intervenções, em termos de implementação de novas políticas, são mais eficazes quando têm lugar durante momentos de mudança. Este é, pois, um momento a não perder para uma intervenção na ação climática e em particular na transição energética.

João Peças Lopes é diretor associado do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. É doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e foi responsável por dezenas de projetos nacionais ou europeus nesta área, tais como a definição de especificações técnicas para a integração de energia eólica no Brasil. É vice-presidente da Associação Portuguesa de Veículos Elétricos.

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