A Transição Energética e a Segurança de Abastecimento do Sistema Elétrico

A Transição Energética e a Segurança de Abastecimento do Sistema Elétrico

A Transição Energética irá nos próximos anos modificar significativamente a composição do portefólio de geração do sistema elétrico. As centrais térmicas irão ser progressivamente desclassificadas, o que aliás já está a ocorrer, e serão substituídas por centrais que exploram recursos energéticos primários renováveis – água, vento e sol – envolvendo o recurso a centrais com capacidade de armazenamento de energia. Estes recursos apresentam uma caraterística de variabilidade temporal que exige ponderação na definição da estratégia de renovação e expansão do sistema electroprodutor, uma vez que a segurança de abastecimento deverá sempre ser garantida e deve ser uma preocupação das autoridades Governamentais e de Regulação do setor energético. Em Portugal a DGEG, em conjunto com a REN, efetua anualmente uma avaliação da evolução da segurança de abastecimento para os anos seguintes – o Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento.

 

O recente episódio de quebra de fornecimento de eletricidade no Texas deve levar-nos a pensar no tema da segurança de abastecimento que normalmente não endereça eventos extremos como os que aí ocorreram – temperaturas extremamente baixas e prolongadas no tempo que conduziram ao aumento do consumo de eletricidade e a várias avarias com causa comum no sistema electroprodutor, em particular nas centrais a gás de ciclo combinado. Apesar de poderem existir várias causas para o que aconteceu no Texas – impreparação do sistema electroprodutor para situações atmosféricas extremas e anormais (designado na literatura anglo-saxónica de falta de “weatherization”), redução da produção eólica por aparecimento de gelo em alguns aerogeradores, inexistência de mecanismos de remuneração por capacidade, falta de capacidade de armazenamento de energia elétrica, falta de capacidade de interligação com as redes vizinhas, …) a verdade é que neste caso ficámos mais próximos de um “act of God” do que de uma situação de falta planeamento do sistema elétrico, ou de inexistência de mecanismos de Regulação eficazes.

 

Conceptualmente, a avaliação da segurança de abastecimento envolve a avaliação da adequação do sistema electroprodutor e divide-se em duas áreas: a avaliação da reserva de cobertura e a avaliação de reserva operacional. Os estudos da reserva de cobertura avaliam se existe capacidade de produção suficiente para abastecer a procura, procurando quantificar o risco de corte de carga considerando o comportamento estocástico das unidades de produção e do consumo. Do ponto de vista das unidades de produção, este comportamento deve-se às saídas de serviço, que podem ser do tipo programadas ou não programadas (avaria fortuita), e à variação temporal dos recursos energéticos primários. Do ponto de vista da procura, este comportamento deriva da sua natural variabilidade cronológica, identificando-se dependências temporais associadas à hora do dia, ao dia da semana e à estação do ano.

 

Por outro lado, a reserva operacional é a folga que o parque electroprodutor tem durante a respetiva operação para mitigar desvios de curto-prazo entre a oferta e a procura decorrentes das variações inesperadas da produção renovável, da procura e da saída de serviço de unidades escalonadas para produção por avaria. A reserva operacional agrega os conceitos de reserva secundária e terciária. Esta reserva é limitada em cada período de tempo e depende das características técnicas das unidades que são capazes de aumentar/diminuir rapidamente a sua produção (reserva secundária) e entrar rapidamente em serviço. A avaliação da adequação / fiabilidade do sistema electroprodutor pode ser efetuada por recurso a um método de Simulação Cronológica de Monte Carlo, que se apresenta como a referência neste tipo de estudos, nomeadamente para sistemas de grande dimensão e com elevada componente produção de origem renovável. Este método segue uma abordagem cronológica baseando-se na amostragem de sequências de eventos de avaria/reparação dos componentes, permitindo reproduzir a operação do sistema ao longo de vários anos.

 

Nestes dois conceitos, a procura desempenha um papel fundamental uma vez que tanto a reserva de cobertura como a reserva operacional são definidas em parte pelo seu respetivo valor. Assim, e ao mobilizar-se a procura para responder às variações da oferta, espera-se diminuir as solicitações ao sistema electroprodutor em termos de consumo e reserva, sendo de interesse quantificar a respetiva contribuição.

 

Atualmente, a flexibilidade da procura é tida como um mecanismo com um enorme potencial para evitar ou diferir custos associados à construção de novas infraestruturas, tanto do ponto de vista da construção de novas centrais e/ou linhas de transporte, ou mitigar o eventual poder de mercado da produção, permitindo redução dos preços e contribuindo para a descarbonização do setor elétrico. É esperado também que este serviço contribua para a regulação de frequência e para a mitigação de desvios entre a oferta e procura. A flexibilidade da procura pode residir em alguns processos industriais que tenham capacidade de ajustar consumos ou residir nos consumos de climatização ambiente em edifícios de serviços ou habitação. Acresce a flexibilidade associada ao controlo do carregamento das baterias de veículos elétricos que terá uma contribuição cada vez maior nos próximos anos.

 

Recentemente o INESC TEC concluiu um trabalho que teve por objetivo analisar o impacto da flexibilidade da procura na segurança de abastecimento do sistema electroprodutor Português até 2030.

 

A mobilização da flexibilidade da procura difere do corte de carga tradicional, e, portanto, não deve ser confundida com os mecanismos de interruptibilidade, uma vez que se prevê a reposição dos consumos mobilizados noutros instantes de tempo, instantes esses que se supõem menos críticos do ponto de vista das reservas disponíveis. Por outro lado, prevê-se que a reposição do consumo mobilizado não ocorrerá em períodos de tempo muito distantes daquele em que se ativou o serviço, sendo o processo de reposição dependente das necessidades energéticas dos consumidores.

 

Dos estudos efetuados foi possível concluir que existem benefícios claros nos indicadores de fiabilidade do sistema elétrico português, sendo de todo o interesse em promover o desenvolvimento regulamentar e regulatório de mecanismos que permitam explorar a resposta da flexibilidade da procura para apoiar o fornecimento de reserva de cobertura e a reserva operacional em Portugal. Este tipo de flexibilidade da procura será de grande importância para garantir a segurança de abastecimento em períodos extremos associados ao aumento significativo da procura, devidos a condições atmosféricas adversas, e ou escassez de recurso primário de energia renovável (vento e ou sol) que o sistema elétrico Português pode vir a enfrentar no futuro. Acresce que se julga necessário desenvolver estudos de sensibilidade da segurança de abastecimento a eventos extremos associados a secas, temperaturas muito baixas e ou muito elevadas com impacto no valor do consumo. Para esses cenários há que admitir a possibilidade de corte de carga, sendo de todo interesse planear a adoção desses mecanismos em vez de os improvisar.

 

João Peças Lopes é diretor associado do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. É doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e foi responsável por dezenas de projetos nacionais ou europeus nesta área, tais como a definição de especificações técnicas para a integração de energia eólica no Brasil. É vice-presidente da Associação Portuguesa de Veículos Elétricos.

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