
O papel do setor da água na visão estratégica para o plano de recuperação económica e social
A recente proposta de uma visão estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030, elaborada por António Costa Silva, merece aplauso e leitura atenta.
O ciclo urbano da água está abrangido nessa visão através da gestão patrimonial de infraestruturas de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de drenagem de águas pluviais, do reforço e resiliência dos sistemas, da otimização da capacidade instalada, do aumento da adesão ao serviço, da redução das perdas de água e do controlo das infiltrações e de afluências indevidas. De referir também o reaproveitamento dos recursos e subprodutos resultantes do ciclo urbano da água na transição para uma economia circular e de baixo carbono, bem como a importância das áreas verdes, contribuindo para a regulação do ciclo da água através da infiltração e do escoamento.
Também a gestão de recursos hídricos não é esquecida. Propõe proteger e valorizar os recursos hídricos, reforçar a capacidade de armazenamento, investir na gestão dos aquíferos, reforçar a rede de recolha e tratamento da informação, aumentar as competências na modelação e simulação dos aquíferos, otimizar o uso da água e gerir os riscos de inundações e fenómenos de seca. Não esquece a ligação da água com a energia e a agricultura, nem a biodiversidade como fonte de água potável, contribuindo para a regulação do clima, a minimização de catástrofes naturais e a valorização de novos serviços dos ecossistemas.
Chamando a atenção para o facto de cerca de quarenta países já terem acesso muito restrito à água, considera importante a cooperação geopolítica e económica, nomeadamente com os países do Norte de África, para minimizar o avanço da desertificação, combater a ameaça climática e a escassez de água.
Num plano mais transversal, deixa claro que é necessário colocar as empresas no centro da recuperação da economia nacional, ajudando-as também na capacidade de se internacionalizarem e evitarem uma excessiva dependência do mercado interno. De saudar o programa de apoio à internacionalização das empresas e da economia, suportada por fatores competitivos intangíveis.
Mas há outras oportunidades para o setor da água que não são suficientemente exploradas nesta visão estratégica para o plano de recuperação económica e social. É possível e é o momento certo de criar um cluster internacional do setor da água em Portugal, bem como de promover muito maior internacionalização do importante saber nacional. Aqui vai um exemplo, de vários possíveis, centrado neste último aspeto da internacionalização.
Se avaliarmos as componentes da cadeia de valor do setor da água em termos do seu potencial de multiplicação, ou seja, da capacidade de criar novas oportunidades de internacionalização das empresas portuguesas, as mais relevantes são as políticas públicas, a organização deste setor e a capacitação dos seus profissionais. Qualquer intervenção nestas componentes em mercados estrangeiros pode ter um efeito multiplicador considerável, abrindo oportunidades para a internalização nas restantes componentes da cadeia de valor.
No entanto, se analisarmos a ainda modesta presença portuguesa no mercado internacional, verificamos que continua a materializar-se essencialmente através de projeto de engenharia, da construção e da assistência técnica, ou seja, essencialmente nas componentes da cadeia de valor mais tradicionais, mas que não têm grande potencial de multiplicação. Significa isto que as restantes componentes correspondem a falhas na cadeia de valor, que naturalmente devemos procurar suprir, pois até uma experiência recente de sucesso.
Efetivamente, nos últimos 25 anos Portugal definiu uma nova de política pública integrada para serviços de água e os recursos hídricos, cujos resultados tiveram um impacto positivo para os cidadãos, a economia, a saúde pública e o meio ambiente, e que são internacionalmente reconhecidos. Portugal é, portanto, um excelente caso de estudo, com uma experiência de sucesso na mudança de política pública de água, com diversidade geográfica, orográfica, hidrológica e social em todo o país, continente e ilhas, com diversidade de modelos de governança dos serviços de água, com diversidade de tecnologias adotadas e com vários êxitos e certamente alguns insucessos.
Há que desenvolver uma nova frente de internacionalização, diretamente junto dos Governos e da administração pública de países estrangeiros selecionados, focada nas políticas públicas, na organização e na capacitação do setor da água.
É esta uma grande oportunidade para intensificar o tradicional esforço de internacionalização pelas empresas nacionais. Há que desenvolver uma nova frente de internacionalização, diretamente junto dos Governos e subsidiariamente da administração pública de países estrangeiros selecionados. Esta frente deve estar focada nas políticas públicas, na organização e na capacitação do setor da água. Ela exige o envolvimento ativo da diplomacia económica, pois o setor empresarial dificilmente consegue acesso eficaz junto dos Governos estrangeiros. Esta estratégia de internacionalização, que combina uma abordarem bottom-up com outra abordarem top-down, permitiria a cobertura e o reforço de toda a cadeia de valor, dando igual intensidade às suas componentes e assim proporcionando mais oportunidades de internacionalização do setor português da água.
Não basta investirmos internamente no setor e fazermos alguma diplomacia regional. Não podemos perder esta oportunidade única de corresponder ao apelo das Nações Unidas, em que a água passou a ser reconhecida como uma das grandes prioridades da Humanidade pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Jaime Melo Baptista, engenheiro civil especializado em engenharia sanitária, é Investigador-Coordenador do LNEC, Coordenador do Lisbon International Centre for Water (LIS-Water), vogal do CNADS e Presidente do Conselho Estratégico da PPA e foi Comissário de Portugal ao Fórum Mundial da Água 2018. Integrou o conselho de administração e o conselho estratégico da IWA. Foi presidente da ERSAR (2003-2015), dirigiu o Departamento de Hidráulica (1990-2000) e o Núcleo de Hidráulica Sanitária (1980-1989) do LNEC, foi diretor da revista Ambiente 21 (2001-2003) e consultor. Foi distinguido com o IWA Award for Outstanding Contribution to Water Management and Science.