José Nuno Fidalgo: O papel do enquadramento regulatório no caminho para a neutralidade carbónica
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José Nuno Fidalgo: O papel do enquadramento regulatório no caminho para a neutralidade carbónica

A Comissão Europeia (CE) estabeleceu metas ambiciosas para atingir a neutralidade carbónica em 2050. Para atingir estes objetivos, a CE aponta o recurso a energias renováveis, em particular a produção distribuída (PD), a eletrificação dos transportes e os sistemas de armazenamento de energia (SAE), entre outros. A integração otimizada destes recursos, em paralelo com a gestão de cargas flexíveis, será baseada em redes inteligentes, amplamente sensorizadas e dotadas de diversos níveis de controlabilidade. No atual ambiente de mercado competitivo, será também essencial um enquadramento regulatório que promova as ações inovadoras mais pertinentes na construção do caminho para a neutralidade carbónica. E este será talvez o aspeto mais desafiador desta missão, dada a imprevisibilidade da evolução tecnológica e dos custos das soluções, das condições socioeconómicas, das condições ambientais que afetam a produção de renováveis, entre outros.

A história recente mostra que nem sempre fomos capazes de antecipar acertadamente todas as consequências das transformações nos sistemas elétricos de energia (SEE). Como exemplo, refira-se uma das apostas mais visíveis de Portugal nas últimas décadas – a PD – que representa atualmente cerca de 40% da energia total produzida. A PD foi, sem dúvida, uma aposta ganha, dados os benefícios que providencia, como o aproveitamento de recursos endógenos ou a contribuição para o share de renováveis.

Nos primeiros estudos sobre o impacto da PD, era vulgar assumir, por um lado, que seriam muitas pequenas instalações de produção eólica e solar e, por outro lado, que estaria próxima das cargas e, assim, faria diminuir os trânsitos nas redes, levando a menores perdas. Contudo, ao longo destes anos e para além de instalações de pequena potência instalada, foram sendo instalados parques eólicos e solares de média/grande dimensão, localizados frequentemente em pontos distantes de centros de consumo. Esta situação foi devida à procura dos locais com melhores condições ambientais (orográficas, regimes de vento, etc.), e também às restrições de zonamento nacional ou municipal.

Nestas condições, está demonstrado (projeto LossPD) que ocorrem fortes trânsitos de energia em linhas de baixa capacidade e, consequentemente, perdas elevadas. O acréscimo de custo (não previsto) decorrente destas situações está a ser incluído nos custos de operação das redes.

O Regulamento Tarifário inclui o designado mecanismo de incentivo à redução de perdas, cujo objetivo seria incentivar o Operador da Rede de Distribuição a fazer investimentos de modo a manter as perdas tão baixas quanto possível. O racional deste mecanismo parece ter sido baseado nas conclusões daqueles primeiros estudos, segundo os quais as perdas tenderiam a baixar com o aumento da PD. O projeto LossPD, no qual foi analisada a rede de Alta Tensão (AT) durante um ano completo, com dados reais de consumos e de PD, permitiu concluir o contrário: as perdas AT com os atuais valores de PD são quase 50% superiores relativamente a um cenário em que não existisse PD. Isto significa que, nas condições atuais, a PD tem um impacto considerável nas perdas e que as estratégias de redução de perdas não podem ser baseadas apenas nas expetativas de crescimento do consumo. Neste sentido, a gestão das perdas da rede de distribuição tornou-se mais complexa e até mais ingrata, uma vez que passa a ser necessário integrar os efeitos (mais imprevisíveis e incontroláveis) da PD.

O mesmo poderá vir a ocorrer com a integração de VE, de sistemas de armazenamento de energia (SAE) e de outros recursos energéticos. A disseminação de aplicações práticas para aproveitamento destes meios dependerá de muitos fatores desde os tecnológicos, passando pelos custos das novas soluções até às questões e incentivos regulatórios. É necessária uma abordagem holística. Não adianta, por exemplo, subsidiar a aquisição de VE se não existirem postos de carregamento suficientes para uma utilização expedita ou se as redes de distribuição não se encontrarem adequadamente dimensionadas. A futura instalação de múltiplos postos de carregamento rápido, que permitam o carregamento simultâneo de vários VE, exigirá o reforço de redes e de postos de transformação. Portanto, é de esperar que a disseminação de VE exija a realização de investimentos avultados nas redes de distribuição e que tenha impacto nas condições de exploração.

Para os SAE, nomeadamente baterias, os desafios regulatórios em perspetiva são semelhantes. Os SAE têm estimulado a investigação neste domínio, levando a novas soluções tecnológicas e, em consequência, ao decréscimo do preço destes sistemas. São conhecidos diversos casos de estudo que identificam situações com retorno do investimento. No entanto, tais circunstâncias são relativamente específicas e extremamente dependentes das condições locais de cada país (percentagem de renovável no mix energético, preço da energia, relação de preços entre períodos horários, etc.), o que significa que ainda estamos longe da situação em que o investimento neste recurso é generalizadamente apetecível.

Neste momento, tanto a indústria como a comunidade científica partilham a visão comum em que os sistemas elétricos de energia (SEE) do futuro integrarão SAE em múltiplos níveis, e com diferentes capacidades e funções, esperando-se que estes venham a desempenhar um papel absolutamente fundamental no percurso para a neutralidade carbónica. Não está em causa o se mas o quando, e o quando dependerá muito das políticas energéticas, das condições socioeconómicas, e naturalmente da atratividade deste tipo de investimento. Note-se também que os benefícios decorrentes da instalação de SAE tenderão a diminuir à medida que a disseminação aumentar, o que representa mais um fator de incerteza e de risco.

Além dos desafios colocados a nível individual por cada elemento, há ainda a questão da integração destes diferentes elementos, do aproveitamento de sinergias, da gestão de conflitos de interesses entre diferentes utilizadores, etc. O papel do enquadramento regulatório será determinante no progresso para a neutralidade carbónica.

José Nuno Fidalgo é investigador sénior do INESC TEC, onde coordena a área de Energy Analytics and Forecasting no Centro de Sistemas de Energia. É responsável por projetos de investigação nacionais e internacionais e é autor ou coautor de centenas de publicações técnicas e científicas. Os seus interesses de investigação incluem reconhecimento de padrões, inteligência computacional, redes neurais e as suas aplicações em sistemas de energia. O investigador é também professor associado na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

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