
Manuel Matos (Energia-Tecnologia): Expectativas que dependem de outras expectativas
Escolhi este título algo misterioso para salientar, por um lado, o papel das expectativas no desenvolvimento técnico e científico (o que se vem a conseguir tem uma força inicial maior se o discurso for ambicioso), ao mesmo tempo que chamo a atenção para as simplificações que por vezes fazemos, ao darmos às expectativas o valor de uma previsão, muitas vezes demasiado otimista.
Descodificando. Um dos temas de atualidade (e de moda) na área energético-ambiental é a eletrificação da sociedade, ou da economia, ou de ambas, que corresponde, até, a mais do que uma expectativa, podendo falar-se de uma inevitabilidade. Ou seja, há um raciocínio subjacente que (simplificando) começa nas alterações climáticas, que só podemos combater se reduzirmos as emissões de CO2e dos outros GEE (gases com efeito de estufa), o que se fará no setor elétrico através do recurso a energias renováveis, o que por sua vez permitirá passar para o setor elétrico atividades de outros setores (mobilidade, aquecimento industrial, etc), eliminando as emissões que essas atividades produziam nas suas versões originais, por uso de combustíveis fósseis.
SE A ELETRICIDADE QUE VAI SER USADA NOS VEÍCULOS ELÉTRICOS RESULTAR DA QUEIMA DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS, NÃO HAVERÁ REDUÇÃO DE EMISSÕES
De caminho, deixem-me recordar um popular raciocínio de sentido contrário (a “deseletrificação” da chávena de chá), em que se fazia notar que queimar um pouco de gás para aquecer o chá é muito mais eficiente do que usar gás para produzir eletricidade numa central térmica, com rendimento inferior a 40%, sem falar em custos de transporte e distribuição. O raciocínio estava correto, mas deixa de ser aplicável se a eletricidade for de origem renovável.
As primeiras discussões sobre mobilidade elétrica também envolveram um raciocínio inescapável: se a eletricidade que vai ser usada nos veículos elétricos resultar da queima de combustíveis fósseis, não haverá redução de emissões, mas apenas a transferência delas, dos meios urbanos para as zonas das centrais, portanto o efeito global da mobilidade elétrica será nessas circunstâncias praticamente nulo.
NÃO NOS PODEMOS DAR AO LUXO DE PENSAR QUE O FACTO DE COLOCARMOS PAINÉIS FOTOVOLTAICOS NO TELHADO DE UM EDIFÍCIO NOS LIBERTA DA OBRIGAÇÃO DE O TORNAR ENERGETICAMENTE EFICIENTE
Fica, portanto, claro que a base de quase tudo é a produção de eletricidade 100% a partir de fontes renováveis e que é com essa expectativa que o edifício do combate às alterações climáticas inclui a eletrificação da sociedade. E é realmente uma inevitabilidade [1], mas não está garantida (convido o leitor a ir verificar a quantos % vamos dos 100%) e não acontecerá se não formos exigentes em relação à eficiência energética, se não integrarmos os recursos renováveis distribuídos usando metodologias de previsão recursos adicionais como a flexibilidade das cargas elétricas e o armazenamento distribuído, através de HEMS e BEMS [2]. Sobretudo não nos podemos dar ao luxo de pensar que o facto de colocarmos painéis fotovoltaicos no telhado de um edifício nos liberta da obrigação de o tornar energeticamente eficiente [3].
Há, portanto, aqui duas vertentes de atuação relacionadas com o setor elétrico e as alterações climáticas, que configuram um nível mais tático (a) e outro mais estratégico (b):
a) Desenvolver a ciência necessária para fornecer os algoritmos e ferramentas de controlo que permitam acolher grandes quantidades de eletricidade oriundas de fontes renováveis distribuídas e finalmente dispensar os combustíveis fósseis. O paradigma das redes inteligentes (ou Smart Grids) foi essencial para estabelecer um ponto de partida e uma linha de desenvolvimento, e hoje já são pacíficos novos modos de funcionamento das redes de distribuição, com inversão do sentido tradicional dos fluxos energéticos, que seriam inaceitáveis há alguns anos atrás.
b) Substituir globalmente as fontes fósseis [4] por fontes renováveis, em particular energia solar, ao mesmo tempo que se incorporam a mobilidade e outros consumos anteriormente não elétricos. Aqui a meta está bem definida, o consenso é geral, há um conjunto de documentos que estabelecem roteiros [5] e planos [6], mas uma parte significativa do detalhe da transição energética depende de ações da iniciativa própria de agentes independentes. Será muito importante monitorizar o grau de execução e o impacto real das medidas propostas e identificar barreiras que sempre se levantam na execução de planos deste tipo.
A mensagem é, portanto, simples, explicando finalmente (espero) o título deste artigo. As expectativas associadas à eletrificação da economia dependem de uma expectativa precedente, de que se consegue produzir toda a eletricidade (incluindo estes novos consumos) a partir de fontes renováveis. Não basta que seja possível, tem mesmo de acontecer!
Manuel Matos coordena, desde 1996, o Centro de Sistemas de Energia do INESC TEC, onde está envolvido em vários projetos de investigação e desenvolvimento nacionais, europeus e internacionais, tendo sido responsável pela equipa de investigação de projetos como CARE (Advanced Control Advice for power systems with large-scale integration of Renewable Energy sources), MORE CARE (More Advanced Control Advice for Secure Operation of Isolated Power Systems with Increased Renewable Energy Penetration and Storage), ANEMOS. PLUS (Advanced Tools for the Management of Electricity Grids with Large-Scale Wind Generation) e evolvDSO (Development of methodologies and tools for new and evolving DSO roles for efficient DRES integration in distribution networks). Está também envolvido em contratos de desenvolvimento e consultoria para operadores de rede, indústria, departamentos governamentais e Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos. No INESC TEC é também Presidente do Conselho Científico. Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto desde 2000, Manuel Matos leciona várias unidades curriculares em cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento em Engenharia Eletrotécnica e Sistemas de Energia.
[1] Inevitabilidade… se quisermos combater as alterações climáticas
[2] Home and Building Energy Management Systems
[3] Possível efeito perverso do conceito NZEB
[4] Para não complicar deixo a questão nuclear para outra ocasião
[5] Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050
[6] PNEC 2030 - ano Plano Nacional Integrado de Energia e Clima