A Estabilidade de Frequência no Sistema Ibérico

A Estabilidade de Frequência no Sistema Ibérico

Há vinte e três anos o INESC TEC organizou na Madeira um curso avançado para a indústria elétrica que contou com a colaboração de alguns colegas formadores ingleses. Fomos então gentilmente convidados pela Empresa de Eletricidade da Madeira (EEM) para um jantar num sítio magnífico de onde se tinha uma vista fabulosa sobre o Funchal. Eis senão que se aproximou uma tempestade que encheu o céu de nuvens escuras e de relâmpagos. Após uma descarga atmosférica toda a ilha ficou às escuras, o que provocou a saída intempestiva dos nossos anfitriões que correram para o centro de despacho da rede. Nessa altura um dos nossos formadores convidados exclamou: Oh a good old blackout!

 

Os sistemas elétricos isolados são particularmente sensíveis a este tipo de incidentes, não sendo raro a ocorrência de black outs. Na Madeira há vários anos que trabalhamos com a EEM, estudando problemas de estabilidade nestas redes, tendo ajudado a definir a estratégia de deslastre frequencimétrico do sistema elétrico e mais recentemente elaborando um novo grid code para o Sistema Elétrico Público da Madeira, publicado em 2019, onde foram definidos os requisitos técnicos que as instalações de produção devem apresentar para que neste território insular se evolua de forma segura para níveis de integração de produção renovável superiores a 60%.

 

Este último sábado soubemos da ocorrência de um incidente na rede de MAT de França que provocou o disparo das interligações elétricas entre Espanha e França, quando as redes Ibéricas importavam cerca de 2.500 MW da rede Francesa. Este incidente requer uma autópsia cuidadosa, pois é difícil de entender, como com todos os procedimentos de segurança que são normalmente adotados na exploração das redes de transmissão, uma situação destas pôde ter lugar. Algo correu muito mal. Na sequência do isolamento elétrico da Península Ibérica, o sistema elétrico de Portugal e Espanha ficou numa situação de desequilíbrio entre oferta e procura que conduziu a uma muito rápida degradação temporal da frequência, atingindo esta grandeza valores inferiores a 49 Hz. O regulamento Europeu 2017/1485 estabelece que o desvio máximo de frequência na sequência de um incidente deve ser igual ou inferior a 0,8 Hz e que o desvio de frequência em regime permanente deve ser igual ou inferior a 0,2 Hz. A taxa de variação máxima de frequência deve ser igual ou inferior a 2 Hz/s. O sistema Ibérico enfrentou então um real problema de estabilidade de frequência que conduziu ao deslastre automático de carga por atuação de relés de deslastre frequencimétrico, tendo sido cortados cerca de 800 MW só em Portugal, para assim evitar um black out. Pode-se dizer que este controlo de emergência funcionou muito bem, tendo a reposição completa de serviço sido efetuada em menos de 2 horas.

 

Felizmente não tivemos nenhum black out na Península Ibérica, caso contrário todo o consumo teria sido atingido e a reposição de serviço teria sido bem mais demorada, mas estas situações são excelentes para se refletir sobre o que pode estar menos bem e como devemos estar preparados para tempos futuros.

 

Ora os sistemas elétricos enfrentam uma importante mudança, que sublinho tem que ser feita, caraterizada pela substituição das centrais térmicas que queimam combustíveis fósseis por centrais eólica e solares PV, que têm uma caraterística de se ligarem à rede através de conversores eletrónicos. Ou seja, estamos a evoluir para um sistema de muito baixa inércia que será particularmente sensível a perturbações que envolvam desequilíbrios entre geração e consumo, como a que ocorreu no passado sábado. E, portanto, a pergunta que precisamos de fazer é: será o sistema Ibérico, numa tarde de verão daqui a dez / quinze anos, capaz de sobreviver a uma perturbação deste tipo?

 

Teremos que estudar cuidadosamente este tipo de problemas nos próximos anos, mas eu atrevo-me a responder dizendo que certamente que sim o sistema sobreviverá. Isto desde que sejam mobilizados mecanismos de disponibilização de inércia síncrona, de emulação de inércia sintética e regulação rápida de frequência, com volumes a definir, associados a novos produtos a colocar em mercado, e desde que sejam ajustados e coordenados periodicamente os planos de defesa associados aos deslastres frequecimétricos de carga que os operadores dos sistemas de Portugal e de Espanha não deixarão de fazer nos próximos anos. Novas funcionalidades de despacho deverão passar estar disponíveis para avaliar em tempo real o risco de instabilidade, correlacionando informação sobre eventos atmosféricos adversos e outros como incêndios, com o grau de segurança dinâmica da rede para incidentes de referência. Nestas situações deverão ser identificados procedimentos de controlo preventivo que serão sugeridos aos despachantes.

 

E, portanto, graças a capacidade da comunidade científica e da indústria em desenvolver soluções inovadoras, a transição energética no setor elétrico seguirá a sua trajetória imparável, transformando os sistemas elétricos em sistemas tendencialmente neutros relativamente à produção de carbono, com níveis adequados de robustez face à estabilidade de frequência e de segurança de abastecimento (assunto sobre o qual brevemente falarei).

  

João Peças Lopes é diretor associado do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. É doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e foi responsável por dezenas de projetos nacionais ou europeus nesta área, tais como a definição de especificações técnicas para a integração de energia eólica no Brasil. É vice-presidente da Associação Portuguesa de Veículos Elétricos.

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