
Grande Entrevista | Graça Carvalho: "No rio Tejo, durante cerca de 70 quilómetros, desde a fronteira de Espanha, não temos nenhum armazenamento de água"
A estratégia “Água que Une” prevê a construção de 14 barragens e Maria da Graça Carvalho, Ministra do Ambiente e Energia, garante que “todas elas se justificam”, seja com objetivos de contenção de cheias ou de segurança de abastecimento. Quanto aos recursos financeiros disponíveis para implementar os investimentos previstos na estratégia, cujo valor global ascende a 5 mil milhões de euros, a passagem de projetos “emblemáticos” do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para o programa Sustentável 2030 permite elevar o apoio comunitário a 85%, mas o setor da água está também a beneficiar de dificuldades na execução de financiamentos atribuídos à ferrovia.
Esta é a primeira parte de uma grande entrevista realizada pelo Água&Ambiente Online à Ministra do Ambiente e Energia, centrada nas áreas da Água, Resíduos, Energia e Conservação da Natureza e Biodiversidade, que será publicada ao longo desta semana.
Com a interrupção abrupta da legislatura, naquela altura, teve a sensação de que era o seu trabalho, em várias frentes, que podia ou que pode morrer na praia?
Não. Nós desenvolvemos muito trabalho ao longo dos últimos, na altura, 11 meses, agora são 12 meses. E o trabalho fica. E continuamos, porque muito do nosso trabalho aqui no Ministério do Ambiente e da Energia é, principalmente neste ano de 2025, a execução de fundos. Temos uma grande percentagem do PRR, na área da água, da energia, da descarbonização dos transportes e [este] é um ano muito importante da sua execução. A outra parte é o programa operacional Sustentável [2030], em que o maior desafio é exatamente este ano de 2025, porque, como ele começou tarde, este é o ano em que, se não se tem um determinado valor de execução, se perde fundos. Portanto, há aqui uma corrida de execução [dos fundos]. E também é o ano da reprogramação, tanto do PRR, como do programa Sustentável. E, depois, [temos] o Fundo Ambiental: o mês de março é o mês em que temos de definir o primeiro despacho de alocação das verbas do Fundo Ambiental. Isso já foi feito e já estamos a executar. São tudo verbas que, se não são bem executadas, se perdem: para a comunidade, para a descarbonização, para a água, para o ambiente. E, portanto, de certo modo, o trabalhar em gestão, para nós, não tem sido um problema grave. Estamos a trabalhar a 200% e a executar aquilo que temos a executar. Hoje, assinámos [protocolos no valor de] 211 milhões de euros com câmaras municipais para [aquisição de] 802 autocarros elétricos. Ontem, publicámos os resultados do PRR para as baterias de armazenamento de energia: 100 milhões de euros, 23 empresas que obtiveram isto. Portanto, há uma série de resultados a acontecer.
E é um trabalho que vai correr.
É um trabalho que vai correr. Um dos resultados mais importantes foi a constituição da Agência para o Clima, não só pelo que significa, que é uma agência para as políticas climáticas, para as políticas de mitigação, de adaptação às alterações climáticas, mas também para toda a gestão dos fundos relacionados com o clima. Nós tínhamos tudo isso na Secretaria Geral do Ambiente, que tinha muitas outras funções, e não tinha uma estrutura dedicada à gestão dos fundos. A fusão da Secretaria Geral do Ambiente e da Secretaria Geral do Governo foi a oportunidade de criarmos essa estrutura e está criada, está a funcionar. E há algo que aconteceu esta semana que me deixa muito feliz, porque mostra que caminhamos no sentido certo, que foi: já com a Agência para o Clima, abriu um programa para os veículos e bicicletas elétricas. Abriu segunda-feira [31 de março], com um formato muito mais simples, porque eles são responsáveis pelos concursos e pelas avaliações, mas uma das indicações políticas é a simplificação dos procedimentos. Abriu um programa muito mais simples do que é habitual no Fundo Ambiental - com [uma verba de] 13,5 milhões, mais 2 milhões para [veículos de] mercadorias - e ontem ao fim da tarde [2 de abril], tinha sido esgotado, mas tinham sido avaliadas já mais de 90% das candidaturas. Já estavam avaliadas em poucas horas.
Quase em tempo real.
Quase em tempo real, porque é muito mais simples. E, portanto, já temos uma estrutura que está dedicada a pensar como é que funcionam os fundos e como é que pode ser mais simples. Outra novidade é que as pessoas não precisam de adiantar financiamento: concorrem primeiro, e se é aprovado, vão comprar o seu veículo e voltam. E já vieram 1100 pedir o financiamento, porque já têm o veículo ou a bicicleta elétrica. Portanto, mostra que fizemos bem em criar uma agência muito dedicada a isto e que as coisas vão andar mais rápido.
"No Algarve, desde que há registo, nunca houve tanta chuva em certas localidades como durante o mês de março"
Vamos começar a nossa entrevista pela água. O plano Água que Une prevê um investimento de 5 mil milhões até 2030. Quanto é que, destes 5 mil milhões, estava previsto ser alocado pelo anterior governo e quanto é que o atual governo programou? Por outro lado, onde é que vão buscar os recursos necessários?
Eu nunca faço as contas [sobre o que é do] anterior governo. Faço [as contas tendo em conta] aquilo que existe em cada um dos programas e aquilo que consigo reprogramar para os objetivos que temos. Portanto, o que lhe posso dizer é que há três projetos grandes, emblemáticos, que é o da Barragem do Pisão, no distrito de Portalegre e dois no Algarve: a tomada de água do Pomarão e a dessalinizadora, que nós conseguimos passar do PRR, em que eles tinham uma dotação... aliás, [a barragem d]o Pisão, no PRR, era só empréstimos, não era subvenção, depois tinha de ser pago. Conseguimos passar esse [projeto] para o PO Sustentável, que é Fundo de Coesão e pode ir até 85% [de comparticipação], assim como a dessalinizadora e a tomada de água do Pomarão, que estavam como subvenção, mas que tinham um financiamento reduzido – cerca de 50% – que agora pode ir até 85%. E tem também a vantagem de não termos a pressão de acabar em agosto de 2026, que é a pressão do PRR, porque o programa operacional Sustentável, que faz parte do PT2030, vai até 2028. Embora eles sejam projetos muito urgentes, porque precisamos daqueles projetos para o Alto Alentejo e o Algarve, mas dá-nos aqui um maior descanso se alguma coisa corre mal ou não corre tão bem na construção.
E há novas fontes de recursos financeiros para fazer face aos investimentos agora previstos no valor de 5000 milhões? Quais são?
Sim. Ao fazer a reprogramação, ao passar parte destes projetos do PRR para o Fundo de Coesão, conseguimos aumentar a dotação. O Fundo de Coesão não aumentou, ele tem 3.1 mil milhões de euros, [mas] parte deste Fundo de Coesão, que é o programa operacional Sustentável, tem muito ferrovia. Tem, por exemplo, uma grande parte dedicada a um programa de carruagens, que não está a ser possível executar, porque há uma litigância em tribunal, que tarda em se resolver. Portanto, todos os meses, há 17 milhões de euros que, se eu não ponho outros projetos a ir buscar este financiamento, perco aquele dinheiro. O que está a acontecer é algo muito mau para o país, porque não está a conseguir desenvolver a ferrovia como nós gostávamos, mas não estamos a perder esse dinheiro, estamos a pôr esse dinheiro na água. E, portanto, há alguns projetos que estão a beneficiar, pelo facto de nós não conseguirmos executar a ferrovia. A ferrovia será um projeto em que nós apostámos e que será executado, mas se o resultado não chegar antes do PO Sustentável terminar, teremos de o financiar pelo Orçamento de Estado.
Em relação ao plano Água que Une, qual foi a reação do Ministro da Agricultura? Ele gostou das medidas que estão previstas para apoiar os agricultores?
O programa Água que Une foi feito em conjunto também com a Agricultura...
Portanto, o Ministério revê-se nos resultados. E os agricultores?
Penso que sim. Como sabemos, os agricultores são muito ambiciosos naquilo que pedem aos governantes – em apoios, em água –, mas penso que ficaram contentes, porque, na verdade, há uma atenção especial em relação à agricultura. Assim como há para a indústria: temos um novo modelo de gestão da água para zonas industriais, nomeadamente para a zona industrial de Sines, que é muito útil para o desenvolvimento industrial.
O plano prevê a construção de 14 barragens. Porquê esta quantidade de novas infraestruturas, ainda que algumas sejam para ser estudadas? O que determinou a previsão de construção de 14 novas barragens?
Eu não diria que são 14 novas barragens. Quando diz o número 14, há muitas espécies de barragens: há barragens com alguma dimensão e há outras que são muito mais pequenas. O racional que foi feito para a [estratégia] Água que Une foi por prioridades. A primeira prioridade é poupar água; a segunda é a redução de perdas; depois, é a reutilização de água; depois, é dar resiliência aos sistemas, otimizar as infraestruturas que existem - por exemplo, alteamento de barragens, aumentar a capacidade do que é possível aumentar a capacidade –; e, só em último caso, ir para infraestruturas novas. Foi este o racional.
"Algumas das nossas ETAR estão a ficar com problemas. Precisamos de renovar os equipamentos"
Mas estão lá listadas 14.
Por exemplo, Fagilde. Fecha uma [barragem] que está velha, precisava de uma reparação muito grande e é construída uma nova barragem de Fagilde, para substituir a anterior. Tem uma capacidade [que é] mais ou menos o dobro do que a atual: a atual tem cerca de 4 hectómetros cúbicos e a outra 7,5 [hm3]. Depois, Girabolhos é uma barragem que é essencial para conter as cheias no Mondego. É uma barragem que é pedida, há muitos anos, essencialmente, para contenção das cheias. Depois, temos a barragem do Alvito, no rio Ocreza. Essa barragem é essencial para segurança do abastecimento. Nós, no rio Tejo, durante cerca de 70 quilómetros, desde a fronteira de Espanha, não temos nenhum armazenamento de água. Neste momento, nós temos uma relação excelente com Espanha, a todos os níveis, na gestão da água, mas, até pela própria segurança de abastecimento, é importante termos alguma segurança de armazenamento da água.
São algumas barragens, ainda assim. Não receia a reação da Comissão Europeia? Conhece a oposição da Comissão Europeia a propósito da construção de novas barragens.
Todas elas se justificam. Temos também a Barragem de Alportel, que é exatamente para a contenção das cheias na zona de Tavira. E são [feitas] com vários objetivos diferentes. Muitas delas para contenção de cheias. Nós não podemos correr o risco de nos acontecer algo – pode acontecer – como aconteceu a Espanha, na região de Valência. Portanto, temos de prevenir isso e temos zonas com grandes riscos de cheias. E, portanto, um dos objetivos é exatamente a identificação das zonas de cheias – o Mondego, o Tejo, a zona de Tavira - e aí, atuar.
A Comissão Europeia, por haver uma razão justificativa, não deverá opor-se a essas infraestruturas?
A minha experiência com a Comissão Europeia é que tudo depende do diálogo e da justificação que nós damos. As coisas têm de ser muito bem justificadas e tem de haver sempre estudos de impacto ambiental muito rigorosos. Estudar os impactos, minimizar os impactos e haver contrapartidas em relação aos impactos.
O plano Água que Une procura dar resposta a muitas questões que são colocadas pelo Conselho da União Europeia, relativamente ao setor da água em Portugal. Está preocupado com a resiliência, as alterações climáticas, as perdas da água, a reutilização das águas residuais. Mas o Conselho, nas suas últimas recomendações, refere-se à questão da racionalização da estrutura de governação, para assegurar uma coordenação eficaz a um nível nacional, regional e local. O que pensa desta recomendação e o que é que entende que pode ser feito ao nível da governação do setor da água?
Nós temos um bom sistema de governação da água. Uma das provas disso foi agora a gestão, o evitar das cheias nestas últimas semanas, em que tivemos quantidades de chuva que bateram recordes. Bateram recordes do lado espanhol, na zona de Madrid, em toda a bacia do Tejo e também bateram recordes em Portugal. No Algarve, desde que há registo, nunca houve tanta chuva em certas localidades como durante o mês de março.
Então, esta é uma preocupação que não tem razão de ser?
Não, não me parece que tenha razão de ser, porque a gestão que foi feita das descargas - coordenada com Espanha, porque nós, neste momento, trabalhamos diariamente com o lado espanhol na gestão dos nossos rios partilhados - e a gestão que a APA [Agência Portuguesa do Ambiente] faz (que é a Autoridade Nacional da Água), é, neste momento, um bom exemplo a nível europeu. Eu tive oportunidade de apresentar tanto a gestão das cheias como a questão de como nós víamos a seca e a falta de água no Algarve, no Conselho Europeu, e a APA já foi convidada para apresentar a questão do Algarve em Macau e em Singapura, e tem agora um convite para apresentar esses resultados na Califórnia.
Ainda continuando com o Conselho da União Europeia, uma preocupação que foi manifestada nas últimas recomendações sobre Portugal e o setor da Água prende-se com a questão da recolha e tratamento das águas residuais. Que ideias é que há para essa área?
Nós temos um valor muito baixo, dos mais baixos de Europa, na reutilização de águas residuais. O que nós temos na Água que Une? Temos um programa nacional para as perdas da água, que é uma das nossas preocupações…
Mas este ponto não é a reutilização, é a recolha e tratamento.
Recolha e tratamento é outro programa nacional que temos. Primeira prioridade: gastar menos; segundo, as perdas; terceiro, reutilização, recolha e tratamento das águas residuais.
E esse programa de recolha e tratamento, quando é que vai ser operacionalizado?
Se não estivéssemos em gestão, era a partir de agora. As primeiras prioridades do programa Água que Une eram essas. Os [programas] das perdas de água já estão [a ser operacionalizados]. São programas com financiamento PRR, complementados pelo Fundo Ambiental e esses estão a correr. Mas o da reutilização, temos já parte [a decorrer] no Algarve, mas tem de ser feito por todo o País e, portanto, era para começar já.
Na qualidade das massas de água, Portugal tem feito um caminho, nem sempre muito firme. Aliás, a qualidade regrediu nos últimos anos, em algumas massas de água, são os indicadores que existem. O que pode ser feito? O Plano Nacional do Restauro vai, de alguma forma, minimizar o problema?
Temos uma boa qualidade da água comparado com os outros países.
Mas isso é para abastecimento humano, falo das massas de água. Dos rios.
Sim, mas mesmo nos rios… temos um grande trabalho de monitorização da qualidade da água e isso pode ser visto, por exemplo, na qualidade de água que temos em muitas das nossas praias fluviais. Há um problema que nós temos que é algumas das nossas ETAR estão a ficar com problemas. Precisamos de renovar os equipamentos.
Gestão da água na zona industrial de Sines: "Estamos a pedir também ao setor privado que faça a sua parte de investimento"
E estavam a prever ou estão a prever fazer investimentos?
Nos programas operacionais regionais, há financiamento para novas ETAR. Agora, a forma de gestão dos programas operacionais tem sido muito descentralizada.
Pelas CCDR.
Pelas CCDR, depois é dividida pelas várias CIM [comunidades intermunicipais] e municípios e é preciso arranjar-se aqui um consenso para que se juntem vários e apostem em determinadas [infraestruturas]… Porque não dá, se distribuímos por todos.
Há algum montante de financiamento disponível?
Há. Não tenho de cor, mas há [financiamento] nas várias CCDR. E nós agora, na reprogramação do PO Sustentável, também pusemos parte [do financiamento] no PO Sustentável [para esta área].
Vamos terminar aqui a nossa secção de água com uma última questão, que tem que ver com a estagnação do setor da água, quer ao nível do abastecimento, quer ao nível do saneamento, que é uma situação que também existe nos resíduos, [onde há] muitos problemas, como sabemos. Há quem entenda que esta estagnação se prende muito com uma centralização no Estado e em empresas municipais e intermunicipais, tendo aqui a iniciativa privada um lugar muito secundário. Como é que se pode resolver isto? Por exemplo, em Espanha, este ano vão ser lançados, pelos ayuntamientos, 100 concessões para serviços de água. Em Portugal, a última concessão data de 2019 e é [apenas] uma concessão. Como é que se podia pôr a iniciativa privada ao serviço quer do setor da água, quer ao nível dos resíduos também?
Nós, neste momento, temos uma experiência na área de Sines, que foi decidida na última Resolução de Conselho de Ministros sobre isso, em que a distribuição da água – da água salgada, da água residual ou da água potável - é feita pelas Águas de Santo André, pela Águas de Portugal, mas, depois, cada um dos privados dá o uso e [faz] dessalinizadoras ou a distribuição local na parte industrial. É um exemplo de um modelo em que estamos a pedir também ao setor privado que faça a sua parte de investimento, porque ali há necessidade de muita água e de ter uma dessalinizadora. Vamos testar este modelo, de não ser o Estado a investir nessa dessalinizadora, mas serem os próprios privados [a investir], porque há alguns que não precisam, precisam só de água salgada para fazer arrefecimento, outros precisarão mesmo de água com qualidade e podem precisar de uma dessalinizadora. Portanto, é um modelo que vamos adotar e verificar como é que vai correr. Esperamos que corra bem.
A nossa experiência com modelos mais desagregados não tem sido muito feliz. Nós estamos até a receber alguns sistemas que estavam fora da Águas de Portugal e que nos estão a pedir para entrar na Águas de Portugal, exatamente por incapacidade de fazer os investimentos necessários.
E os privados não poderiam ter aí um papel?
Sim, poderiam ter um papel, mas, infelizmente, são financiamentos muito elevados e os sistemas mais modernos e que correm melhor são aqueles que estão ligados ao sistema da Águas de Portugal. Até agora, [essa] tem sido a nossa experiência.