
Apagão ibérico expõe vulnerabilidades do sistema elétrico: especialistas pedem revisão estrutural do modelo energético
Muito em breve, só a assinatura do Jornal Água&Ambiente Online garantirá leitura deste artigo/conteúdo.
Não perca a melhor informação sobre Energia, Resíduos e Água. Assine aqui.
Apoie a informação plural e independente.
No passado dia 28 de abril, a Península Ibérica mergulhou numa inesperada escuridão. Um apagão de grande escala afetou milhões de consumidores em Portugal e Espanha, interrompendo temporariamente a normalidade do quotidiano e levantando sérias interrogações sobre a robustez e preparação do sistema elétrico ibérico. O que terá realmente acontecido? Poderá repetir-se? Está o sistema preparado para lidar com as exigências de um novo paradigma energético baseado em fontes renováveis?
Segundo o Governo português, a origem do incidente esteve associada a um problema técnico na rede espanhola, cujas implicações se propagaram a Portugal, num fenómeno de efeito dominó. No entanto, os contornos técnicos e operacionais do evento ainda estão a ser investigados pelas autoridades competentes.
Perante este cenário, o jornal Água&Ambiente Online procurou ouvir a opinião dos seus comentadores especialistas do Fórum Energia — Jaime Braga, Manuel Costeira da Rocha, Paulo Preto dos Santos e Francisco Ferreira —, que convergem na urgência de repensar os alicerces do sistema energético europeu e, em particular, o ibérico.
Uma rede à mercê da volatilidade
“Ocorreu vindo da rede espanhola um pico de tensão na rede de transporte de grande intensidade que, em segundos, provocou o disparo em cadeia de todo o sistema”, observa Jaime Braga, Assessor da Direção da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), em matéria de energia. Sem especular sobre a origem da ocorrência, Jaime Braga sublinha que o sistema nacional respondeu com profissionalismo e competência. “Aquilo que a REN – Redes Energéticas Nacionais e a E-REDES fizeram não pode estar sujeito a críticas. Estas coisas levam algum tempo e foi tudo feito tecnicamente por ordem”.
“Tenho as maiores reservas sobre esta taxa de importação ser economicamente boa, porque isso significa vulnerabilidade e deu-se essa vulnerabilidade”, observa Jaime Braga
Contudo, Jaime Braga aponta responsabilidades mais profundas à estratégia energética: “O problema é este: fomos apanhados, ao final da manhã, com importações muito grandes de Espanha por ser economicamente favorável”. Segundo o especialista, Portugal tem apostado numa política de importação de energia barata — sobretudo energia solar, produzida em Espanha — o que, apesar de vantajoso em termos económicos, aumenta a vulnerabilidade do sistema. “Tenho as maiores reservas sobre esta taxa de importação ser economicamente boa, porque isso significa vulnerabilidade e deu-se essa vulnerabilidade”, afirma.
Paulo Preto dos Santos, Diretor Executivo da Dourogás Renovável, corrobora esta linha de análise, reforçando o papel da baixa inércia da rede como fator crítico no evento. No momento da falha “estavam mais de 15 000 MW de geração fotovoltaica em Espanha, que caíram subitamente, e 33% do consumo de Portugal estava pendurado na importação dessa geração espanhola, de baixa inércia pelo excesso de geração renovável”, destaca. Para o engenheiro, a elevada penetração de fontes renováveis com fraca inércia, sem resposta rápida adequada, foi determinante: nessas situações, “a frequência varia mais rapidamente e exige reservas com resposta ultrarrápida que não existiram”.
Francisco Ferreira, presidente da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, também indica o desequilíbrio entre oferta e procura como fator essencial: “O mais provável [ter acontecido] foi uma incapacidade do gestor da rede espanhola de fazer o acerto entre a oferta e a procura”. Para Francisco Ferreira, este tipo de eventos revela a necessidade de maior resiliência do sistema, sobretudo numa era em que a penetração das renováveis está a crescer exponencialmente.
Lidar com um novo paradigma energético
A transição energética coloca desafios técnicos substanciais. Sem conjeturar sobre o que esteve na origem do problema, Manuel Costeira da Rocha, Technology Strategy Director Smartenergy, reforça a ideia de que, naquele momento, a produção era essencialmente renovável suportada por inversores na sua maioria sem capacidade de inércia: “O sistema estava com um nível de inércia muito baixo. E quando isso acontece, a rede não tem capacidade para sobreviver aos incidentes mais emergentes”.
“Não podemos querer mudar o paradigma do setor energético utilizando tecnologias diferentes e as mesmas normas, os mesmos procedimentos regulatórios e a mesma organização do mercado”, salienta Manuel Costeira da Rocha
Em consequência, alerta para a inadequação do atual modelo regulatório e de mercado. “Não podemos querer mudar o paradigma do setor energético utilizando tecnologias diferentes e as mesmas normas, os mesmos procedimentos regulatórios e a mesma organização do mercado”, afirma. Na sua perspetiva, o atual regime marginalista de definição de preços “está a prejudicar-nos mais do que aquilo que nos está a ajudar”, sublinhando ainda as demais alterações que são necessárias ao nível do funcionamento das redes, dos equipamentos, da tecnologia e da componente digital.
Tanto Manuel Costeira da Rocha como Paulo Preto dos Santos defendem a necessidade de inverter a lógica de operação das fontes renováveis. “É essencial garantir serviços de inércia e estabilidade”, nota o Diretor Executivo da Dourogás Renovável, recomendando que as centrais solares utilizem inversores do tipo grid-forming, capazes de contribuir ativamente para a estabilidade da rede, e não apenas segui-la passivamente.
“Há que rever o mercado marginalista comum europeu, pois este não está adaptado às novas realidades e dificuldades de integração de níveis tão elevados da geração inframarginal das renováveis”, realça Paulo Preto dos Santos
Além disso, acrescenta também Paulo Preto dos Santos, “há que rever o mercado marginalista comum europeu, pois este não está adaptado às novas realidades e dificuldades de integração de níveis tão elevados da geração inframarginal das renováveis”.
Atualmente não existem “praticamente infraestruturas de armazenamento como serviço de apoio ao sistema”, avisa Francisco Ferreira
Francisco Ferreira acrescenta outro elemento crucial: a falta de infraestruturas de armazenamento. “Temos de melhorar a capacidade do sistema para lidar com a transição energética”, afirma, sublinhando que atualmente não existem “praticamente infraestruturas de armazenamento como serviço de apoio ao sistema”. Além disso, o presidente da ZERO sustenta que precisamos de mais centrais com capacidade de arranque do sistema elétrico a partir do zero, sublinhando a importância de centrais de backup e da resiliência das infraestruturas críticas, como as redes e a comunicação.
O papel das centrais a gás e da resposta técnica
Apesar de o apagão ter sido súbito e generalizado, a reposição do fornecimento decorreu, segundo todos os especialistas, dentro dos parâmetros técnicos normais. Jaime Braga elogia a atuação das entidades competentes: “Se fosse colocada em serviço uma subestação e não acertassem com o consumo correto, ia tudo abaixo outra vez. A reposição foi feita com profissionalismo”.
Jaime Braga destaca ainda o papel fulcral das centrais térmicas a gás — nomeadamente a da Tapada do Outeiro e a do Pego — na reposição da rede. “Graças ao parecer técnico da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), de há dois anos, a central da Tapada do Outeiro ainda está ao serviço”. Destacou também, nesse sentido, a recente decisão do Governo de “aumentar o número de centrais que servem de arranque ao sistema”.
“Não podem dispensar as centrais a gás. A rede de gás tem de continuar, o que significa que têm de alterar uma lei fundamental do país, que é a Lei de Bases do Clima, que prevê que a rede de gás acabe em 2040. Na minha opinião, completamente irrealista”, discorre o Assessor da CIP.
Comunicação e preparação: dois pontos críticos
Manuel Costeira da Rocha refere, no entanto, falhas na comunicação institucional, defendendo maior humildade e coordenação por parte dos decisores políticos para garantir informação atempada e tranquilizadora à população.
Em jeito de conclusão, recomenda que este evento sirva como uma lição para evitar ocorrências semelhantes no futuro. “Temos de aprender, de uma vez por todas. E isto não é um problema exclusivo de Portugal — é um problema europeu. Precisamos de adotar uma mentalidade mais aberta e reconhecer, de forma definitiva, que o modelo atual não é sustentável a longo prazo. Se nada mudar, o que aconteceu voltará a ocorrer em breve. Não tenho dúvidas quanto a isso”, remata.