
Colunista Adérito Mendes (Água-Tendências): A água do vizinho é mais barata que a minha
- Bom dia vizinho, como tem passado com os seus problemas de abastecimento de água?
- Olhe sabe, como a Câmara nunca mais se decidia a prolongar os canos até ao fim do beco acabei por abrir os cordões à bolsa e mandei fazer um furo. Tiveram que furar mais de 150 metros até encontrarem água e ficou muito mais caro do que pensava. Mas agora tenho água com fartura e pressão para dar e vender. Vender é como quem diz. Parece que é proibido vender água a terceiros. Para as minha hortas, pomar, oficina de polimento de rochas ornamentais e casa chega e sobra!
- Olhe que em relação à venda da água já não é bem assim vizinho. E se tem água em abundância pode vender a esses seus vizinhos que pagam aos bombeiros para cá virem trazer água durante o verão. A lei da água de 2005 tem um artigo (18º) que estabelece que os recursos hídricos não públicos podem ser objecto de comércio jurídico privado regulado pela lei civil.
Esta conversa, entre o redator deste comentário e o senhor Mário, ocorreu num local semi-urbano de génese irregular da época 70/80 do século passado, na fronteira entre os concelhos de Oeiras e Amadora. O sr. Mário, que é um octogenário dedicado ao trabalho e acérrimo cumpridor da lei, ficou radiante quando lhe disse que já não era proibido vender água a vizinhos. Não com o intuito de amortizar o investimento do furo que fez, mas para ajudar os vizinhos que queriam aproveitar as suas parcelas de terreno para práticas agrícolas urbanas e ocuparem os seus tempos livres de reformados mas que o não podiam fazer por falta de água.
Volvidos três anos uma nova conversa:
- Boa tarde vizinho Mário. Este local agora já parece outro, com tantas árvores e hortas! De facto o seu furo dá muita água! Quantos vizinhos consomem água do seu furo?
- O senhor engenheiro é que é o culpado! Como o meu empregado, que também é vizinho, ouviu a nossa outra conversa, contou por aí aos outros e como senhor engenheiro é que é das águas toda a gente tomou o que disse como lei e, olhe, foi um corrupio de vizinhos a pedirem para lhe vender água. Lá fui deixando fazerem umas ligações de tubos e o resultado está à vista. Mas só me retribuem o que querem para a energia elétrica gasta na bombagem.
Já que falamos disto, aproveito para lhe perguntar se, no caso das águas tratadas de uma ETAR de uma empresa, abastecida pela Câmara, que está construída junto à extrema de um terreno meu que não tem água, eu posso comprar essa água para rega de um pomar que o meu filho quer plantar nesse terreno em vez de fazer um furo que deve ser ainda mais fundo que o meu?
- Olhe vizinho, como não tenho a certeza se a natureza jurídica da água dessa ETAR é pública ou privada, não sei se pode ser objecto de comércio jurídico privado. Prometo que vou esclarecer-me e depois digo-lhe.
A propósito deste relato truncado e adaptado e da reutilização das águas residuais tratadas, tão pouco utilizadas em Portugal, ocorreu-me trazer à reflexão dos leitores a problemática que em seguida coloco.
Quanto à natureza jurídica da água livre na natureza não parece haver dúvidas que a mesma está regulada pelo regime da lei da dominialidade dos recursos hídricos. E para as águas captadas no domínio público que circulam nas redes de abastecimento de empresas privadas que depois se transformam em águas residuais qual natureza jurídica destas? Não sendo uma resposta, como o abastecimento de água é um serviço sujeito a concessão, a questão não se coloca sobre as águas que circulam nas redes de abastecimento público. Mas quando a água é comprada à rede pública e é distribuída em espaços privados (ex. grandes condomínios turísticos, complexos fabris, etc) e transformada em água residual drenada e tratada em ETAR privada, qual a natureza jurídica da água à saída da ETAR? Privada ou pública? É passível de comércio jurídico privado regulado pela lei civil ou pela lei da titularização dos recursos hídricos?
Adérito Mendes, engenheiro civil do ramo de hidráulica, formado em 1976 pelo Instituto Superior Técnico, é pós-graduado em “Alta Direcção em Administração Pública” e especialista em “Hidráulica e Recursos Hídricos”. Foi Coordenador Nacional do Plano Nacional da Água – 1998/2002 e 2009/2011 e autor de dezenas de estudos, projectos e pareceres relacionados com recursos hídricos. Começou a carreira como técnico superior na Direcção Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, em 1977, passou pela Direcção Geral dos Recursos Naturais. Além de profissional liberal na área de estudos, projectos e obras hidráulicas, foi Director de Serviços de Planeamento do Instituto da Água-1988-2011, assessor de serviços de Comissão Directiva do POVT-QREN e assessor da presidência da Agência Portuguesa do Ambiente. Exerceu ainda as funções de docente do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa-2002-2014.