Entrevista: “Até 2030 o país necessita de construir 24 novas unidades de digestão anaeróbia”
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Entrevista: “Até 2030 o país necessita de construir 24 novas unidades de digestão anaeróbia”

Tendo como pano de fundo o Plano de Ação para o Biometano 2024-2040, o Portal Ambiente Online entrevistou Francisco Gírio, Presidente do Laboratório Colaborativo BIOREF, que desempenhou um papel crucial na elaboração do documento apresentado ao Governo de António Costa. O coordenador da Unidade de Bioernergia do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) analisa as prioridades sobre a sua implementação e garante que “para ser um negócio atrativo” existem passos a dar pelo Executivo, “nomeadamente a existência de incentivos à criação de novas unidades de digestão anaeróbia”.

 

No passado mês de março, o Laboratório Colaborativo BIOREF apresentou ao Governo o Plano de Ação para o Biometano (PAB) 2024-2040. Que balanço faz do trabalho desenvolvido e que pontos fortes destaca?

Foi um trabalho bastante completo do ponto de vista técnico, mas que, claramente, possui como ponto forte a auscultação e os contributos recebidos de um conjunto muito alargado da fileira, quer de entidades governamentais, quer de agentes públicos e privados da fileira do biogás e biometano, durante a fase de elaboração do Plano e, mais tarde, durante a consulta pública. A versão final do PAB foi, assim, enriquecida com muitas recomendações que entendemos que eram relevantes e faziam sentido.

 

De que forma será possível, como sugere o PAB, o envolvimento dos setores estratégicos (resíduos sólidos urbanos, águas residuais, agricultura, pecuária e agroindústria) para o aproveitamento do potencial do biogás e implementar, com êxito, o mercado interno de biometano?

O envolvimento será natural à medida que os vários setores se aperceberem que a forma mais rápida de promover a circularidade e valorizar os resíduos é através do mercado do biometano. É claro que para ser um negócio atrativo existem passos a dar pelo atual Governo, nomeadamente a existência de incentivos à criação de novas unidades de digestão anaeróbia.

 

Quais devem ser as prioridades quanto à rede de infraestruturas? Uma das intenções plasmada no documento passa pelo incentivo à criação de comunidades de biometano ou de gasodutos virtuais para facilitar a produção e a injeção de biometano na rede de gás. Como é que isto se concretiza e que desafios implica? Pode explicar o que são gasodutos virtuais?

Os gasodutos virtuais são soluções alternativas aos gasodutos tradicionais que permitem a distribuição do biometano produzido em locais remotos para pontos de entrada na rede de gás, aproximando a produção do consumo. Envolvem o transporte do gás, geralmente por estrada na forma gasosa ou liquefeita, mas a sua concretização exige um mapeamento rigoroso do potencial de produção e das caraterísticas da infraestrutura de gás a nível regional de maneira a garantir a sua viabilidade. Por outro lado, os investimentos nas infraestruturas para ocorrerem necessitam do estabelecimento de metas obrigatórias de incorporação de biometano na rede de gás, que está previsto no PAB, mas é necessário calibrar as metas com necessidades de biometano para uso na mobilidade, como gás natural veicular, em particular nalgumas regiões do interior do país.

 

Para alimentar o PAB está prevista a construção de novas unidades de digestão anaeróbica (produção de biogás)? Quantas terão de ser construídas e que dados tem sobre a vontade de as construir? Há estimativa por setor estratégico?

Até 2030, o país necessita de construir 24 novas unidades de digestão anaeróbia com capacidade instalada de 1000 m3/h de biogás, o que dará cerca de 90 GWh/ano. O esforço maior deve vir do aproveitamento dos efluentes pecuários, mas também do setor dos resíduos urbanos. Só com apoios do PRR existem já cerca de uma dezena de projetos aprovados para novas unidades de digestão anaeróbia.

 

“É necessário fazer acontecer o PAB e as suas 20 linhas de ação”

 

O setor dos resíduos, que hoje é produtor de biogás, estará disponível para fazer o upgrade para o biometano?

O setor dos resíduos está totalmente disponível desde que as contas “fechem”. Ou que as Feed-in-Tariff (FIT) para eletricidade cheguem ao fim. Julgo que aqui se pode dizer que são necessários investimentos, mas que para que isso aconteça tem de haver incentivos governamentais, para que os mesmos não acabem por ser suportados pelos munícipes.

"Seria mais fácil executar o PAB se a recolha seletiva dos resíduos orgânicos acelerasse em Portugal, assim como o cumprimento de outras medidas já identificadas no Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU)"

A recolha seletiva de biorresíduos é obrigatória desde 1 de janeiro. Mas há atrasos na implementação do sistema de recolha por parte das autarquias. Pode este atraso comprometer o PAB, sendo os resíduos um dos setores estratégicos?

Não prevemos que comprometa de forma significativa a implementação do PAB, mas seria mais fácil executar o PAB se a recolha seletiva dos resíduos orgânicos acelerasse em Portugal, assim como o cumprimento de outras medidas já identificadas no Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU).

 

No caso dos efluentes agrícolas, muitos veem este Plano como a solução para a transformação destes resíduos, de forma ambientalmente eficaz e natural. Que dificuldades antecipa no aproveitamento dos efluentes agrícolas?

Se se refere aos efluentes da agropecuária, o PAB vem ajudar a resolver um problema ambiental, se bem que a digestão anaeróbia também gera uma fração líquida de digerido rica em azoto e outros nutrientes, que necessita de formas de valorização mais sustentáveis do que o seu encaminhamento para Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR). No caso de resíduos agrícolas sólidos, caso de palhas de arroz, de amêndoa ou palhas de cereais, e tomando já em consideração fatores de sustentabilidade em que parte dos mesmos tem de permanecer nos solos agrícolas, existe um potencial para co-digestão com outros resíduos orgânicos, que é essencial para escalar a dimensão das unidades de digestão anaeróbia em Portugal.

 

A nível do licenciamento, temos visto que há inúmeras barreiras, desde a burocracia à morosidade, na aprovação de projetos, e que colocam em causa os investimentos, inovação e competitividade. Teme que isto venha a ser um obstáculo?

Existe sempre esse receio, mas tenho a certeza de que a futura Coordenação do PAB prevista na Resolução de Conselho de Ministros vai priorizar a remoção destas barreiras não tecnológicas, que são tão ou mais importantes que os desafios técnicos.

 

A criação de um quadro de incentivos para o biometano surge na primeira fase de implementação do PAB, sendo que parte dos investimentos estão enquadrados no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Em que sentido deve ser clarificado este quadro de incentivos?

É fundamental que nas próximas chamadas do PRR sejam elegíveis projetos que apoiem o capex (despesas com aquisição de ativos) e opex (despesas operacionais) de unidades produtoras de biogás que por digestão anaeróbia, quer por gasificação com critérios distintos dado a diferença de custo das tecnologias em análise. Mais de 70% do capex em novas unidades de produção de biometano advém dos custos de produção de biogás, pelo que não podem ser deixados de fora sob pena de se excluir a criação de um verdadeiro mercado de biometano.

"O PAB é muito consensual e tido pelos diversos atores públicos e privados como demasiado importante para ficar esquecido dentro de uma gaveta governamental"

Ganhar escala será fundamental. Considera que o país conseguirá trilhar este caminho do biometano de forma a atingir a maturidade necessária para se tornar um produtor com expressão?

Não basta desejar. É necessário fazer acontecer o PAB e as suas 20 linhas de ação, mas se isso acontecer Portugal tem tudo os que os outros países europeus possuem para fazer crescer de forma sustentada o mercado de biometano.

 

Com um novo Governo em funções e alguma instabilidade política que possa vir a acontecer a curto-médio prazo, teme que possa estar em causa a boa execução do PAB?

Creio que não. O PAB é muito consensual e tido pelos diversos atores públicos e privados como demasiado importante para ficar esquecido dentro de uma gaveta governamental.

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