
Financiamento e licenciamento são os grandes entraves às centrais de valorização energética
O reforço da capacidade de valorização energética no País está a ser analisado pelo Grupo de Trabalho (GT), constituído no final de novembro (despacho n.º 14013-A/2024), que tem como objetivo desenvolver o Plano de Emergência de Aterros para minimizar o envio de resíduos para este destino final. As conclusões do GT serão conhecidas no final deste mês de janeiro, mas os especialistas contactados pelo Água&Ambiente Online antecipam o que podem ser os pontos críticos da implementação desta estratégia.
Segundo o documento do GT, a que o Água&Ambiente Online teve acesso, estão a ser considerados três cenários: um primeiro cenário que contempla o reforço da capacidade de valorização das centrais existentes da LIPOR - Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto e da Valorsul em Lisboa e Vale do Tejo; um segundo cenário que prevê este mesmo reforço, mas também a criação de uma nova central na região Centro; e, por último, um terceiro cenário, que inclui o reforço das centrais existentes e ainda duas novas centrais de valorização energética, no Centro e no Algarve.
O tema é considerado urgente pelo setor, sobretudo porque o cenário é dramático: cerca de 60% dos resíduos urbanos continua a ser enviado para aterro e, neste contexto, o tempo de vida útil destas infraestruturas é inferior a cinco anos em 18 dos 23 Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU).
O Água&Ambiente Online foi perceber como olham alguns especialistas do setor para esta aposta do Executivo e quais os prós e contras. O financiamento, a par do licenciamento, são os pontos mais críticos na implementação desta estratégia.
Ultrapassar “preconceitos infundados”
Para Feliz Mil-Homens, “a hierarquia de tratamento de resíduos deve ser a bússola orientadora da gestão de resíduos”. Neste sentido, o professor do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL) vê como “muito positivo” que se considere a valorização energética como parte das tecnologias disponíveis e que “seja ultrapassado o preconceito infundado que tem vigorado” relativamente a esta opção.
Feliz Mil-Homens lembra que, ao contrário de outros países da União Europeia (UE) que, nos últimos 20 anos, reduziram substancialmente a percentagem de resíduos enviados para aterro, “Portugal mandou para aterro, sistematicamente, todos os anos deste século, entre 55% e 60% dos resíduos urbanos; ou seja, mais de três milhões de toneladas de resíduos por ano”. “É uma situação insustentável”, aponta. O resultado é conhecido: os aterros construídos estão a esgotar a sua capacidade e “mesmo que tomássemos hoje a decisão de avançar alguma das quatro linhas de valorização energética de que o país desesperadamente precisa, o que está ainda longe de acontecer, nenhuma delas estará operacional antes de 2029/2030 (no melhor dos cenários), pelo que estamos já muitíssimo atrasados relativamente às necessidades”.
Na sua perspetiva, a expansão da vida útil dos aterros “é um paliativo de muito curto alcance”, pelo que “é urgente avançar para o aumento de capacidade de valorização energética no país, de modo racional”. “Desde logo, onde é mais fácil, rápido e barato fazê-lo: nas duas centrais atualmente existentes no Continente, em simultâneo com a manutenção e renovação das atuais linhas, que já contam 25 anos de produtiva atividade”, diz. Além disso, considera essencial que se avance “com os processos de procura de novas localizações, nomeadamente na região Centro e na região Sul, uma vez que esse é sempre um processo muito longo e não isento de espinhos”. “Quer a expansão das atuais centrais, quer a procura de novas localizações, são processos complexos do ponto de vista institucional, contratual, tecnológico, ambiental e social e, como tal, demorados”, avisa.
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“Urgência na decisão é imperiosa”
Também João Pedro Rodrigues, CEO da GIBB Engineering, concorda com a aposta no reforço de capacidade de valorização energética, “sobretudo quando continuamos a ter a maioria dos resíduos a acabar em aterro”, cujas infraestruturas têm “uma capacidade finita” e estão próximas do limite máximo. “Estamos perante um cenário crítico de capacidade e autossuficiência”, alerta. De resto, para João Pedro Rodrigues, “um aumento de capacidade de valorização energética não é inimigo de uma aposta desejável no aumento de preparação para reutilização de reciclagem”. “Quando olhamos para os dados estatísticos de outros países, verifica-se que os países que têm melhores resultados em termos de taxas de reciclagem são simultaneamente os que também têm uma maior capacidade de valorização energética. E isto não é um acaso, são modelos que podem conviver”, realça.
O CEO da GIBB Engineering alerta, contudo, para dois eventuais constrangimentos numa aposta que luta contra o tempo: o investimento e o licenciamento.
Falamos de infraestruturas com “um custo de investimento bastante elevado”, sendo que “o modelo de financiamento e de remuneração é um aspeto crítico”. O consultor admite que, além de alguma intervenção do Estado num projeto desta dimensão, o Banco Europeu de Investimento poderá eventualmente ser considerado.
O licenciamento é outro ponto crítico. “Entre a decisão de localização, os estudos de impacte ambiental e a construção, serão uns cinco anos. Nessa altura, estaremos em 2030”, nota. “Também por isso, a urgência na tomada de decisão é imperiosa”, sublinha.
ZERO defende “investimento na reutilização e reciclagem”
Em sentido contrário, Rui Berkemeier, técnico da ZERO - Associação Sistema Terrestre Sustentável, discorda veementemente da opção que está em cima da mesa. “Seria totalmente inaceitável gastar mil milhões de euros nesses incineradores que, não só não iriam responder em tempo útil ao problema dos aterros, como constituiriam um enorme rombo nos já depauperados orçamentos das autarquias, com impactes significativos no clima e inibindo o desenvolvimento da economia circular”, critica.
O grande investimento, sustenta, “tem claramente de ser focado na reutilização e reciclagem, uma vez que se Portugal tivesse cumprido as metas comunitárias de preparação para reutilização e reciclagem previstas para 2025 (55%), mais do dobro do que fazemos (23%), estaríamos este ano a enviar para aterro menos 1,5 milhões de toneladas de resíduos urbanos (RU), ou seja, metade do que estamos a enviar hoje”.
Em alternativa ao reforço da capacidade de valorização energética, a ZERO já propôs ao Governo várias medidas, incluindo a requalificação das unidades de Tratamento Mecânico e Biológico (TMB) de forma a atingirem uma taxa de desvio de resíduos de aterro de, no mínimo, 50% e instalação de novas unidades de TMB com o mesmo nível de eficiência. “Através destas medidas, será possível desviar um milhão de toneladas de RU em aterro no curto-prazo (máximo, três anos), garante Rui Berkemeier. Outra medida defendida pela ZERO passa pela implementação alargada de recolha seletiva com modelos de alta eficiência: porta-a-porta e contentores de proximidade com acesso condicionado, a par da implementação de tarifários justos (PAYT) e do Sistema de Depósito com Retorno para embalagens de bebidas. Estas medidas permitirão “alcançar o equilíbrio financeiro dos sistemas e, no mínimo, duplicar a taxa de reciclagem de resíduos urbanos no espaço de aproximadamente cinco anos”, aponta.
Além disso, Rui Berkemeier adianta que “a instalação de unidades de TMB a montante dos incineradores da Valorsul e da LIPOR iria aumentar em 65% a capacidade disponível desses incineradores para receber a fração resto dos TMB dos sistemas envolventes", reduzindo, dessa forma, ainda mais a deposição em aterro.