Novas normas para a qualidade da água exigem grandes investimentos e inovações tecnológicas
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Novas normas para a qualidade da água exigem grandes investimentos e inovações tecnológicas

A entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 69/2023 trouxe um novo paradigma para a gestão da qualidade da água para consumo em Portugal. Perante as novas e exigentes regras que se impõem, como a verificação obrigatória de novos parâmetros a partir de 2026, e de acordo com os testemunhos transmitidos ao Água & Ambiente Online pela Águas e Energia do Porto, EPAL - Empresa Portuguesa das Águas Livres, e os Laboratórios Agroleico, o setor do abastecimento de água enfrenta a necessidade de investimentos avultados para se adaptar com rigor, num esforço que passa pela modernização laboratorial, implementação de novas metodologias analíticas avançadas e reforço da capacidade de monitorização de parâmetros críticos.

O regime jurídico da qualidade da água destinada ao consumo humano transpõe para a legislação portuguesa a Diretiva (UE) 2020/2184 e substitui o regime anterior, reforçando a segurança e a qualidade da água potável, que em Portugal, de acordo com a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), assume já um patamar de excelência, com 98,77% de água da torneira segura fornecida em 2023 (últimos dados divulgados).

Não obstante, o diploma introduziu novos parâmetros microbiológicos e químicos, como a Legionella, os ácidos haloacéticos, o bisfenol A e as substâncias perfluoroalquiladas (PFAS), e reduziu os limites permitidos para chumbo e crómio. Também estabeleceu um sistema de avaliação e gestão do risco - para a segurança da água - que abrange toda a cadeia de abastecimento, desde as bacias de drenagem até aos sistemas prediais, com especial atenção a instalações prioritárias. A atualização da lista de vigilância permite monitorizar novos contaminantes emergentes, garantindo uma adaptação contínua às necessidades de saúde pública.

A adaptação aos novos requisitos será progressiva, com a verificação obrigatória dos novos parâmetros nos Programas de Controlo da Qualidade da Água (PCQA) a partir de 2026.

Investimentos e impacto operacional

A adaptação às novas regras tem um impacto financeiro direto para as entidades gestoras. E também para os laboratórios privados com as quais trabalham. Sem conseguir avançar valores concretos para proceder às reformulações necessárias, todas as entidades contactadas pelo Água&Ambiente Online confirmam a necessidade de investimentos substanciais.

Em antecipação à aplicação das novas exigências, Ruben Fernandes, administrador executivo da Águas e Energia do Porto, revelou que foram feitos “grandes investimentos infraestruturais e tecnológicos no laboratório da empresa”, que está acreditado desde 2000, pela ISO/IEC 17025 (padrão que especifica os requisitos para a competência dos laboratórios de ensaio e calibração).  Esta aposta permitiu dotá-lo com todas as condições para dar resposta às novas exigências relativas à qualidade da água, nomeadamente com “equipamentos de última geração e de recursos humanos qualificados”.

A partir de 2024, a Águas e Energia do Porto passou a incluir a análise dos novos parâmetros no Plano de Controlo Operacional. Os parâmetros que não se encontram no âmbito da acreditação do laboratório, são subcontratados a laboratório europeu acreditado para o efeito.

Em curso, está a validação do método ISO 11731 (padrão internacional para avaliação da qualidade microbiológica da água) para deteção e quantificação de Legionella, enquanto os ensaios para ácidos haloacéticos e bisfenol A entrarão em funcionamento ainda este semestre. Já a análise das PFAS só estará acreditada em 2027, embora os limites a esta substância sejam obrigatórios já a partir de 2026.

O aumento do número e tipo de análises implica um “impacto financeiro direto para qualquer entidade gestora”, salienta Ruben Fernandes

O aumento do número e tipo de análises implica um “impacto financeiro direto para qualquer entidade gestora”, que, não estando a ser “repercutido na fatura dos consumidores”, é, neste caso, totalmente assumido pela Águas e Energia do Porto, salienta Ruben Fernandes. Para fazer face a este impacto, o seu laboratório tem integrado consórcios internacionais, com projetos candidatos a financiamento europeu.  Por outro lado, a entidade gestora prevê rentabilizar os investimentos laboratoriais disponibilizando serviços de análise a clientes externos.

Também a EPAL tem vindo a investir na capacitação progressiva da sua direção de laboratórios (EPAL/LAB) para garantir a monitorização do cumprimento dos requisitos sobre a qualidade da água, presentes na legislação europeia e nacional, informa Rui Carneiro, Diretor do Laboratório da EPAL.

No laboratório da EPAL, a avaliação do impacto financeiro está em curso, sendo que Rui Carneiro acredita que os principais encargos estarão mais associados aos investimentos e à exploração dos sistemas de abastecimento do que à monitorização da qualidade da água.

A EPAL/LAB já monitoriza “há alguns anos”, no âmbito do seu PCQA, grande parte dos novos parâmetros da qualidade da água que o Decreto-Lei n.º 69/2023 veio introduzir, o que, explica Rui Carneiro, permitiu identificar situações ainda em fase de definição da legislação e, consequentemente, antecipar desafios e preparar melhor os investimentos.

No entanto, admite que a avaliação do impacto total das exigências ainda decorre, sendo expectável a necessidade de ajustes adicionais. A EPAL também reforçou as avaliações de risco ao longo de toda a cadeia de abastecimento, desde as captações de água até ao ponto de entrega ao consumidor final.

De resto, a EPAL está  a levar a cabo uma “avaliação de todos os sistemas de abastecimento sob a sua responsabilidade, quanto ao cumprimento dos novos requisitos da qualidade da água, objetivando a realização de uma avaliação de risco completa, abrangendo toda a cadeia de abastecimento, desde a bacia de drenagem para as massas de água, as atividades de captação e tratamento, o armazenamento e a distribuição, até ao ponto de utilização final, de forma a identificar todas as situações que carecem de intervenção”, revela.

Complementarmente aos novos ensaios em águas naturais, águas de processo e águas de consumo, a EPAL/LAB também já efetua a avaliação dos produtos utilizados nos processos de tratamento e dos materiais aplicados nas infraestruturas da empresa e que entram em contacto com água distribuída.

Microplásticos e a complexidade da monitorização

A monitorização dos microplásticos surge como um dos aspetos mais desafiantes do diploma. Em março de 2024, a Comissão Europeia publicou a Decisão Delegada (UE) 2024/1441, que estabelece a metodologia harmonizada para monitorizar microplásticos na água para consumo humano. Esta norma define um processo padronizado que inclui a recolha de amostras por filtração, a análise das partículas e fibras microplásticas através de microespetroscopia vibracional (que identifica a composição química de materiais em escala microscópica), e a classificação por dimensão e composição dos polímeros. Esta decisão impõe desafios técnicos às entidades gestoras, que necessitam de equipamentos avançados para a deteção fiável destes contaminantes.

A monitorização dos microplásticos surge como um dos aspetos mais desafiantes do diploma

Sobre estes novos requisitos, o laboratório da Águas e Energia do Porto está a validar um método baseado em pirólise-cromatografia gasosa-espectrometria de massa, em águas superficiais e residuais. “A ser confirmada a inclusão dos microplásticos na Lista de Vigilância, além de não deter a técnica selecionada, a entidade gestora enfrentará um outro grande entrave: a exigência da recolha de amostra água por filtração em série, de um volume mínimo de 1000 litros de água”, expõe Ruben Fernandes.

Seguindo de perto as “melhores abordagens de monitorização”, a direção da EPAL/LAB também tem vindo a adaptar as metodologias analíticas existentes e a implementar novas técnicas de ensaio, a fim de reforçar a deteção e monitorização dos novos parâmetros da qualidade da água, como microplásticos e outros contaminantes emergentes, conforme estipulado na legislação.

Os desafios dos laboratórios privados

A par com as entidades gestoras, os laboratórios privados desempenham um papel de relevo nesta fase de transição e enfrentam dificuldades operacionais e de investimento para corresponder às novas obrigações legais. Os Laboratórios Agroleico, do grupo Ecoserviços, estão a apoiar as entidades gestoras em termos de conhecimento técnico, divulgando e esclarecendo as metodologias de recolha e análise.

João Levy, presidente do Grupo Ecoserviços, salienta que a monitorização de novos parâmetros analíticos apresenta diversos obstáculos, um dos principais é "a validação dos métodos e a sua acreditação, o que “exige tempo e recursos significativos": “O desenvolvimento e a implementação de novos métodos analíticos são dispendiosos, tanto em termos de equipamentos, como de tempo de pesquisa e desenvolvimento. Além disso, garantir que os resultados sejam reprodutíveis ao longo do tempo e entre diferentes laboratórios ou condições pode ser um desafio complexo”, observa.

O caso dos PFAS é dado como paradigmático. Segundo João Levy, os PFAS exigem múltiplos métodos analíticos para identificação e quantificação, pois devido às concentrações extremamente baixas em água potável, a análise destes compostos requer técnicas avançadas. Ainda, a presença de outras substâncias pode interferir nas análises, dificultando a precisão. A falta de padrões uniformes e regulamentações claras sobre os respetivos métodos de análise pode causar inconsistências nos resultados e na interpretação dos dados. “Os métodos de análise para PFAS são caros e exigem equipamentos de ponta e analistas experientes”, o que representa uma barreira para muitos laboratórios nacionais.

Já para a monitorização da Legionella, “atualmente os laboratórios nacionais já estão bem capacitados para a sua realização”, observa o presidente da Ecoserviços.

Outra dificuldade prende-se com os microplásticos: sem uma noção clara do mercado potencial para este tipo de análises, os laboratórios privados não podem investir em equipamentos dispendiosos sem garantias de retorno, expõe João Levy. Como solução defende uma abordagem colaborativa entre instituições públicas, universidades e laboratórios, tendo em vista a criação de centros de referência que concentram a análise.

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