
RASARP 2024: seis indicadores que revelam os desafios dos serviços de águas e resíduos
Muito em breve, só a assinatura do Jornal Água&Ambiente Online garantirá a sua leitura.
Não perca a melhor informação sobre Energia, Resíduos e Água. Assine aqui.
Apoie a informação plural e independente.
O Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos de Portugal (RASARP 2024), publicado no final de fevereiro, demonstra que os principais indicadores da qualidade dos serviços de água e resíduos permaneceram estagnados em 2023 face ao ano anterior, apontando para desafios que se mantêm na reabilitação das infraestruturas e na eficiência económica dos serviços, entre outros. Do amplo conjunto de indicadores monitorizados anualmente, o Água&Ambiente Online convidou três especialistas a destacar dois indicadores mais relevantes nos três serviços regulados pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) - abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos - que evidenciem os principais desafios que estes setores enfrentam nos próximos anos.
Abastecimento: reabilitação de condutas aquém do necessário
Na sua análise ao RASARP 2024, João Levy, professor no Instituto Superior Técnico (IST) e presidente do Grupo Ecoserviços, realça, pela positiva, a produção de um relatório, “muito importante para o conhecimento dos sistemas nacionais de saneamento básico”. Contudo, deixa uma nota negativa, que se prende com “a pouca ou quase nenhuma relevância que é dada aos privados” no documento. É dada “muita ênfase ao desenvolvimento empresarial, mas ao de empresas municipais e intermunicipais, e não à de concessões municipais”, lamenta.
Na área do abastecimento de água, João Levy destaca, em particular, dois indicadores do relatório que considera mais relevantes: a reabilitação de condutas e a percentagem de perdas reais.
A percentagem de reabilitação de condutas no serviço em baixa “é, em média, de 0,5%/ano quando deveria rondar os 2,5% para uma vida útil de 40 anos”. O regulador, recorde-se, recomenda entre 1,5 e 4% ao ano para uma classificação boa neste indicador. “Esta baixa percentagem diz-nos que as entidades gestoras não estão a assegurar os investimentos necessários de manutenção, pelo que serão, em breve, confrontados com valores de reabilitação para os quais não terão as verbas necessárias”, antecipa. Para João Levy, “as taxas de cobertura superiores a 100% que se verificam são, por isso, enganadoras, porque nos custos não estão os montantes de manutenção e substituição”.
No que respeita às perdas reais, “72% da água não faturada (27%) não é aceitável face à necessidade de se garantir o uso eficiente da água”, observa João Levy, considerando que “estas perdas são uma resultante do baixo investimento na manutenção dos sistemas, pelo que estes dois indicadores estão associados”.
Reabilitação de condutas: "as entidades gestoras não estão a assegurar os investimentos necessários de manutenção"
Segundo os dados da ERSAR, o nível médio de água não faturada na baixa fixou-se nos 26,9% e a média do valor das perdas reais até aumentou, no último ano de avaliação, para a generalidade das entidades em baixa (de 118 para 123 l/ramal.dia para sistemas com uma densidade de ramais igual ou superior a 20/km de rede), resultando esta ineficiência na perda de cerca de 169,7 milhões de metros cúbicos de água na rede em 2023.
“Para os dois indicadores, facilmente se verificará que os maiores investimentos são feitos nas concessões municipais e que todas estas apresentam os valores de perdas mais baixos”, realça ainda o professor do IST.
Saneamento: minimizar inundações e melhorar controlo de descargas
Olhando para os resultados do RASARP 2024 de avaliação global do serviço de gestão de águas residuais, José Saldanha Matos, professor catedrático do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa (IST-UL) e presidente da Parceria Portuguesa para a Água (PPA), começa por notar que, tanto nos sistemas em alta como nos sistemas em baixa, de um total de 21 indicadores, “verificam-se resultados insatisfatórios, respetivamente, em 5 e 9 indicadores do domínio de avaliação”.
Quatro indicadores revelam-se, contudo, insatisfatórios tanto para os sistemas em alta como para os sistemas em baixa: os indicadores de ocorrência de inundações, reabilitação de coletores, monitorização da condição de coletores e de controlo de descargas de emergência e de tempestade. São indicadores que se relacionam “mais ou menos diretamente entre si”, observa. “Não tendo lugar monitorização, que permite conhecer antecipadamente a condição de coletores, e que facilita uma gestão proativa e seletiva dos ativos a reabilitar, prolonga-se o envelhecimento das infraestruturas e agravam-se os riscos de mau desempenho, nomeadamente em termos de inundações e descargas de tempestade”, concretiza.
Assim, segundo o RASARP, nos sistemas em alta há, em média, 8,6 ocorrências de inundação na via pública ou em propriedades, com origem na rede pública, por cada 100 km de coletor, quando o regulador recomenda entre 0 e 0,5 para uma qualidade de serviço boa. Já a percentagem de descarregadores de emergência e de tempestade que são monitorizados e apresentam funcionamento satisfatório era de apenas 25% no serviço em alta. Ainda assim, José Saldanha Matos nota que houve uma evolução positiva nestes indicadores desde 2021, e que, globalmente, são “menos insatisfatórios que os valores apresentados pelos sistemas em baixa”.
Saneamento: de um total de 21 indicadores, “verificam-se resultados insatisfatórios, respetivamente, em 5 e 9 indicadores do domínio de avaliação”
De facto, no serviço em baixa, registaram-se, em média, 4,56 inundações a cada 1000 ramais, em 2023 (o regulador recomenda um valor igual ou inferior a 0,25) e somente 23% dos descarregadores de emergência e de tempestade eram monitorizados e funcionavam bem.
“Os resultados obtidos nesses indicadores revelam o grande investimento que Portugal ainda tem que fazer em aquisição de conhecimento, para suportar decisões inteligentes de investimento e de medidas de gestão, no sentido de melhorar muito significativamente os indicadores referidos e poder evoluir positivamente no sentido da satisfação dos objetivos da Diretiva das Águas Residuais Urbanas (DARU)”, conclui José Saldanha Matos.
A DARU, publicada no final do ano passado e que terá de ser transposta para o ordenamento jurídico interno até final de julho de 2027, para além de impor novas exigências de tratamento e de neutralidade energética às entidades gestoras, também dá realce “aos planos integrados de gestão das águas residuais urbanas”, realça o especialista, “com objetivos de redução da poluição resultante de descargas de tempestade, e com identificação, para posterior implementação, de medidas de prevenção, melhoria e controlo“.
Gestão de resíduos: é essencial garantir a cobertura de gastos
No que respeita à gestão de resíduos urbanos, o consultor João Pedro Rodrigues destaca dois indicadores do RASARP 2024: a taxa de recolha seletiva e o da cobertura de gastos em baixa.
O primeiro indicador avalia a percentagem de resíduos urbanos recolhidos seletivamente na área de intervenção de cada entidade gestora, face ao total de resíduos recolhidos. O resultado global, em 2023, para as entidades em baixa foi de 22%, quando o regulador recomenda um desempenho acima de 20% para uma avaliação mediana e de 40% para uma classificação boa. “Estamos no limiar de uma qualidade de serviço mediana, ainda que alguns municípios em algumas regiões estão de facto com algum atraso”, observa o consultor. Para este indicador, contribui também a recolha seletiva de biorresíduos, que ainda é bastante incipiente, representando 3% do total, em média. “É um valor muito baixo”, avalia. Ainda assim, entre 2022 e 2023, houve uma “evolução bastante relevante, e praticamente todos os municípios do país disseminaram as práticas de recolha seletiva de biorresíduos”. “Esperemos que no próximo ano este indicador melhore”, diz.
Recolha seletiva: o resultado global, em 2023, para as entidades em baixa foi de 22%, quando o regulador recomenda um desempenho acima de 40% para uma classificação boa
Quanto à cobertura de gastos, “a situação é mais complexa” e os resultados são diferentes para a alta e para a baixa. “Se, na alta, temos cobertura de mais de 100% dos gastos”, realça, “na baixa, só estamos a cobrir, em média, 68% dos gastos com os proveitos da atividade de gestão de resíduos”. E o desempenho das entidades em baixa não tem melhorado, bem pelo contrário. “Tem havido sistematicamente, ao longo do tempo, uma redução significativa [do desempenho] neste indicador”, sublinha o gestor. Em 2019, por exemplo, o nível de cobertura de gastos no serviço em baixa era de 83%. “Por um lado, os gastos dos serviços têm aumentado, seja na baixa seja na alta, por outro, não tem havido um ajustamento tarifário na baixa para cobrir esses gastos”, conclui João Pedro Rodrigues.
O consultor salienta ainda que apenas 15 entidades gestoras do total de 260 avaliadas aplicam sistemas PAYT (Pay As You Throw), sendo que apenas nove destas o fazem para o setor doméstico. Ou seja, “não só não temos proveitos tarifários para recuperar os gastos como ainda estamos muito longe de um aspeto que é decisivo: explicar ao cidadão que se tiver um comportamento adequado tem benefícios”, realça João Pedro Rodrigues. Este seria, de resto, o caminho para melhorar o outro indicador do relatório que escolheu destacar: a taxa de recolha seletiva. “As pessoas precisam de um incentivo económico e, se aumentarem a sua recolha seletiva multimaterial e de biorresíduos, deverão ser beneficiadas economicamente”, argumenta. “Só conseguimos melhorar este indicador para os níveis que desejamos com estes incentivos, quando as tarifas cubram os gastos integrais do serviço”, remata.