
A “Magia do lixo”
Quando comecei a trabalhar neste setor, em 2016, fui numa comitiva governamental ao Brasil. Foram inúmeras as reuniões, em vários locais, mas lembro-me de uma em particular, no Rio de Janeiro, em que estavam vários representantes do setor dos resíduos, públicos e privados. Um desses representantes, de quem infelizmente não me lembro o nome, mas que trabalhava, frisou, “há demasiados anos neste setor”, falou, naquele jeitinho especial dos brasileiros, na “magia do lixo”, explicando que as pessoas estavam habituadas a colocar todos os dias o lixo na rua e que, por magia, no dia seguinte, já lá não estava.
São muitos os atores deste setor que preferem esquecer o “lixo”, sobretudo porque, de facto, ele acaba sempre por desaparecer e ser tratado
Esta frase tem-me acompanhado desde então e acredito que hoje, em Portugal, temos a dita “magia do lixo” a múltiplos níveis. São muitos os atores deste setor que preferem esquecer o “lixo”, sobretudo porque, de facto, ele acaba sempre por desaparecer e ser tratado. Não querem saber quanto custa, ou como é recolhido e onde é tratado, e preferem acusar os municípios e os sistemas de ineficiência e inação. A crítica é sempre muito fácil e a primeira a aflorar. Mas a verdade é que na liderança do “desaparecimento” dos resíduos estão os municípios e os 23 sistemas de gestão e tratamento de resíduos (SGRU), que diariamente asseguram a recolha e o tratamento de mais de 5 milhões de toneladas de resíduos urbanos por ano.
(...) Em 2024, os resíduos urbanos em Portugal continuam a aumentar e não a estagnar, como pressupõe o PERSU2030
No entanto, estamos a chegar a um ponto em que já não conseguimos fazer mais magia. Os aterros estão a esgotar-se a uma velocidade preocupante, e, queiramos ou não, continuam a ser uma solução necessária, pois não existe ainda capacidade de valorização suficiente para todos os resíduos que produzimos. E, em 2024, os resíduos urbanos em Portugal continuam a aumentar e não a estagnar, como pressupõe o PERSU2030. As novas metas, comunitárias e nacionais, exigem que, até 2030, tripliquemos no País a meta de Preparação e Reutilização para Reciclagem (PRR) e que, em 2035, depositemos menos de 10% em aterro. Atualmente, estamos em 57%...
Os Planos de Ação para cumprimento do PERSU2030 (PAPERSU), apresentados pelos municípios e SGRU, apontam para a necessidade de investimento de, alegadamente, mais de 3 mil milhões de euros. Digo ‘alegadamente’ porque, a um passinho do final de 2024, ainda não se conhecem os PAPERSU aprovados. Claro que poderá haver partilhas, sinergias, inovação que facilitem o nosso trabalho, mas o número em cima da mesa para que sequer se possa almejar cumprir as metas continuará a ser colossal. Cumprir metas é caro. Não gostamos de aterros, compreensivelmente, mas tratar resíduos por valorização energética, digestão anaeróbia ou outras soluções é caro. A recolha quanto mais próxima for, mais onerosa fica. Quanto mais fluxos tivermos, mais dispendioso é recolher. Se exigimos materiais de retoma com elevados graus de pureza e separação, o processo de triagem é mais complexo e custoso. Quanto mais heterogéneas forem as embalagens que colocamos no mercado, mais difícil o respetivo tratamento e reintrodução na economia circular.
Não gostamos de aterros, compreensivelmente, mas tratar resíduos por valorização energética, digestão anaeróbia ou outras soluções é caro
Todas as opções que tomamos acima, na cadeia de valor, têm a respetiva consequência no custo no seu final.
A Valorsul faz este ano 30 anos e ao longo deste seu tempo de vida o tema financiamento do setor de resíduos sempre foi objeto de grande discussão. Todavia, nunca foi tão premente. Este é um setor deficitário, por natureza, e as ditas receitas tradicionais têm diminuído (remuneração garantida da energia) ou não acompanham o esforço dos municípios e sistemas (Responsabilidade Alargada do Produtor). O financiamento público, que no passado desempenhou um importante papel, é muito diminuto perante o esforço que se exige. Resta a tarifa municipal, que cada vez mais desempenha um papel vital no financiamento da recolha e tratamento de resíduos. Mas sejamos frontais: em metas ambientais, que são responsabilidade e interesse do todo nacional, o esforço que se pede aos municípios não é justo, nem equilibrado.
Os números e o tempo trabalham contra nós. Os desafios são conhecidos. Acredito que, como País, reunimos condições para podermos ser um exemplo europeu nesta área. Mas, para tal, é necessário que todos tenhamos consciência, e assumamos, de uma vez por todas, que temos um papel essencial a desempenhar.
Mas sejamos frontais: em metas ambientais, que são responsabilidade e interesse do todo nacional, o esforço que se pede aos municípios não é justo, nem equilibrado