Banir ou não banir os motores de combustão, eis a questão

Banir ou não banir os motores de combustão, eis a questão

Nos últimos dias, tem sido debatido se a Europa deve ou não banir os motores de combustão interna a partir de 2035. A decisão de banir este tipo de motores havia sido pré-acordada entre os Estados-membros em 2022 e faz parte do esforço da União para combater as alterações climáticas, visando acelerar a transição para veículos elétricos. Porém, a medida foi inesperadamente boicotada pela Alemanha. Seguiu-se um turbilhão que incluiu alianças entre a Alemanha e outros países, por um lado e, por outro lado, posições de apoio à medida que incluíram, por exemplo, uma carta subscrita por 47 empresas apoiando a medida. Este debate culminou num acordo entre a Alemanha e a Comissão: os motores de combustão movidos a e-combustíveis podem continuar a ser produzidos e comercializados além de 2035. O episódio é relevante porque ilustra as diferentes camadas do desafio climático – não do desafio em si ou do conhecimento necessário para o resolver, mas de como pôr em marcha as medidas que lhe respondam. Que lição tirar desta saga?

 

A medida

Os automóveis representam cerca de 15 por cento das emissões de CO2 na UE. Uma parte do pacote de medidas de combate às alterações climáticas incide sobre a descarbonização do setor dos transportes. O objetivo é que, até 2050, o setor de transportes se torne neutro em emissões. Contribuindo para este objetivo, o Parlamento Europeu apoiou, em junho de 2022, uma proposta da Comissão: a partir de 2035, os automóveis e carrinhas (definidas como “light comercial vehicles”) novos colocados no mercado teriam obrigatoriamente de ser de emissões zero.

Importa sublinhar que a medida não significaria que todos estes veículos teriam de ser de emissões-zero até 2035, dado que não afetaria os carros e carrinhas já existentes. A vida média destes veículos é de 15 anos. Assim, a medida entraria em vigor em 2035 na expectativa de chegar a 2050 com todos os veículos deste tipo em circulação de emissões zero. A legislação significaria que, a partir de 2035, deixaria de ser permitido vender novos veículos movidos a combustíveis fósseis. Na prática, deixariam de ser vendidos veículos com motores de combustão interna, favorecendo assim os elétricos.

 

O bloqueio

O processo legislativo da União Europeia tem vários passos até à entrada em vigor de uma nova lei. Ora, na passada segunda-feira, 13 de março, já na fase final do processo, o Secretário de Estado dos Transportes do governo Alemão, Michael Theurer, defendeu que a comissão deveria apresentar "uma proposta para a utilização de e-combustíveis enquanto combustíveis neutros”1, permitindo a sua utilização além de 2035.

Berlim pretendia que Bruxelas acomodasse os e-combustíveis na legislação sobre emissões de automóveis e carrinhas. Apoiaram a Alemanha oito países, incluindo Itália, República Checa e Portugal, que rejeitaram diferentes partes da medida bloqueando o processo de aprovação2.  

 

E-combustíveis

Os e-combustíveis (eletro-combustíveis) são combustíveis gasosos (como o hidrogénio e o e-metano) ou líquidos (como o e-diesel) produzidos a partir de eletricidade renovável (solar ou eólica) ou descarbonizada (o que pode significar muitas coisas). Essa fonte de energia elétrica diferencia-os dos biocombustíveis, que são produzidos principalmente a partir de biomassa.

Para produzir e-combustíveis, a eletricidade é usada para decompor água em hidrogénio e oxigénio. Combinando o hidrogénio obtido com dióxido de carbono (CO2) atmosférico, produzem-se hidrocarbonetos como diesel, gás (metano) ou combustível para aviação. Os e-hidrocarbonetos emitem gases de efeito de estufa uma vez queimados, mas são considerados “neutros” na utilização que fazem de CO2 atmosférico, visto que, uma vez queimados não acrescentam C02 ao já existente. Resta a componente de eletricidade consumida na sua produção: quanto maior a componente de eletricidade renovável ou “descarbonizada” utilizada na sua produção, menor as emissões associadas contabilizadas.

 

O debate

O debate tem três eixos. A eficiência energética, a coexistência de modelos de abastecimento e as suas implicações (adiar a mudança) e o sinal político (os compromissos são reversíveis).

O processo de produção de e-combustíveis, seja hidrogénio, sejam e-hidrocarbonetos, é inerentemente ineficiente, convertendo, no máximo, metade da eletricidade consumida em combustível3. É por isso que, do ponto de vista da eficiência energética, a opção por automóveis elétricos faz todo o sentido.

A estes factos os críticos do boicote Alemão acrescentam mais dois argumentos.

A opção de manter motores a combustão nos automóveis e carrinhas atrasará a descarbonização, adiando a transição para a opção elétrica que, em última análise, é a transição necessária. Atrasa a descarbonização porque, além da produção de e-hidrocarbonetos ser menos eficiente do ponto de vista energético, sempre que não haja fontes de energia renovável disponível, os motores poderão utilizar combustíveis fósseis “tradicionais”. Para a medida ser devidamente implementada, o acordo obrigará à inclusão de formas de garantir a provisão de e-combustíveis e de motores sem hipótese de funcionar a gasolina ou diesel “convencionais”. Além disso, a medida obriga à coexistência de duas redes de abastecimento de natureza muito diferente, o que coloca desafios económicos adicionais.

Finalmente, o sinal político dado agora mina a confiança, na medida em que desvaloriza os consensos conseguidos na União – que poderão, afinal, ser apenas transitórios – e encoraja futuros boicotes. Como salientado na carta de apoio à versão original da medida, subscrita por 47 empresas, entre as quais a Volvo e a Ford, mas também a Iberdrola e a Unilever, o recuo tem um impacto económico. A cedência à pressão Alemã desvaloriza o investimento já feito pelas empresas que estão mais adiantadas no processo de conversão para o novo paradigma elétrico, investimento que viam como garantido dado o consenso existente.

 

Não perder de vista o objetivo

Veículos de emissão zero e veículos de emissões neutras não são a mesma coisa. Nunca é demais recordar que a resposta necessária ao desafio climático não é manter as emissões atuais de gases de efeitos de estufa, mas reduzi-las. Na Europa, programámos a concretização desse objetivo em dois passos: neutralidade carbónica até 2050, redução a partir daí.

O caso dos motores de combustão ilustra bem o problema societal que temos pela frente: a forma como o desafio climático se vai revestindo de camadas – sociais, económicas, políticas –, a ponto de podermos perder de vista o objetivo do que estamos a fazer e a curtíssima margem temporal que temos para o fazer.  

O boicote surge por razões político-económicas. A Alemanha está a proteger a parte da sua indústria automóvel que está atrasada na transição para a produção de elétricos. A Autoeuropa será porventura a razão por que o Governo Português apoiou o boicote alemão. Mas mesmo entre a indústria Alemã a posição não foi consensual, tendo a Volkswagen e a Audi tomado posição em polos diferentes do debate4.

Comentando a publicação do último relatório do IPPC, a 20 de março, o Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres, sublinhou que o relatório “é um apelo para acelerar maciçamente os esforços climáticos de todos os países e setores e em todos os prazos. O nosso planeta precisa de ação climática em todas as frentes: everything, everywhere, all at once.5 Cinco dias depois do apelo à aceleração, a Europa respondeu decidindo marcar passo.

 

Fontes:

1 https://www.euronews.com/green/2023/02/23/eu-to-ban-petrol-and-diesel-cars-by-2035-heres-why-some-countries-are-pushing-back consultado a 23 de março

2 https://www.ft.com/content/64ecc598-fdf7-402a-9351-cd821a4ffc01 consultado a 23 de março

3 Pasini, G.; Lutzemberger, G.; Ferrari, L. (2023). Renewable Electricity for Decarbonisation of Road Transport: Batteries or E-Fuels? Batteries 9, 135. https://doi.org/10.3390/batteries9020135 ; Ueckerdt, F., Bauer, C., Dirnaichner, A. et al. (2021). Potential and risks of hydrogen-based e-fuels in climate change mitigation. Nat. Clim. Chang. 11: 384–393. https://doi.org/10.1038/s41558-021-01032-7

4 https://electrek.co/2023/03/14/germany-finds-allies-changes-combustion-car-ban-eu/ consultado a 26 de março

5 https://press.un.org/en/2023/sgsm21730.doc.htm consultado a 26 de março

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