Debater práticas regulatórias é preciso. Vamos a isso?
Sempre tive curiosidade em perceber como diferentes países procuram resolver desafios muitas vezes comuns. Na atividade da LIS-Water interagimos com dezenas de reguladores em diversas regiões do mundo e com eles procuramos debater melhores práticas regulatórias. Justifica-se ponderarmos algumas delas, com um olhar virado não apenas para o mundo como também para a realidade nacional.
Um primeiro desafio no setor é o planeamento, e já agora a sua efetiva implementação. Os planos de gestão de longo prazo das entidades gestoras de serviços devem ser o instrumento regulatório essencial. Nestes planos as entidades gestoras devem comprometer-se com os objetivos a atingir e justificar as medidas a implementar e as tarifas necessárias. O regulador deve dar diretrizes para o seu desenvolvimento, aprovar, ou pelo menos analisar, estes planos e monitorizar a sua execução ao longo do tempo. Numa amostra de duas dezenas de países europeus verificamos que na sua maioria as entidades gestoras desenvolvem estes planos, mas em apenas cerca de um terço dos casos o regulador tem a função de os aprovar. Em Portugal deveríamos universalizar a utilização dos planos de gestão, melhorando significativamente a situação nas entidades municipais, bem como reforçar a intervenção regulatória nesse processo.
Um segundo desafio, ligado ao anterior, é a regulação por metas. Por exemplo, na Zâmbia o regulador aprova níveis mínimos aceitáveis de serviço a atingir num período específico para onze indicadores (garantias de nível de serviço) e as entidades gestoras assinam um acordo com o regulador com as intervenções a realizar para cumprir esses níveis (acordo de nível de serviço). O regulador monitoriza o cumprimento das metas pelas entidades gestoras e os resultados são disponibilizados ao público em todos os pontos de atendimento. No Perú o regulador aprova metas de gestão que cada entidade gestora deve cumprir para um período de cinco anos, tendo por base os respetivos planos de gestão, verificando e reportando o cumprimento, por indicador e também através de um índice de cumprimento global. Em Portugal poderíamos complementar a atual situação, já bastante consolidada, de regulação com valores de referência para o conjunto das entidades gestoras, com uma regulação por metas evolutivas no tempo dirigidas a cada entidade gestora e tendo naturalmente em conta o seu contexto de partida.
Um terceiro desafio corresponde a instrumentos de incentivo e de enforcement. O conceito é simples, premiar quem se distingue pela positiva e criar mecanismos de pressão, mas também de apoio técnico, a quem não cumpre de forma persistente. Tudo isto com ampla divulgação pública, com estratégias de comunicação regulatória bem dirigidas. Na Zâmbia o regulador organiza anualmente o evento de lançamento do relatório do setor, onde atribui prémios às entidades gestoras que mais evoluíram e as que apresentam os melhores desempenhos para cada indicador e globalmente. Também atribui prémios para os melhores gestores e os melhores jornalistas, e utiliza ainda incentivos financeiros como estímulo adicional. Por outro lado, as entidades gestoras com desempenho abaixo de limites aceitáveis podem ser colocadas num regime de supervisão regulatória especial, onde têm de elaborar um plano de melhoria do seu desempenho e apresentar relatórios de progresso mensais. O regulador passa nesses casos a monitorizar de perto todas as operações, incluindo as decisões tomadas pela gestão e pelo conselho de administração, podendo inclusive participar nas suas reuniões. No Perú o regulador faz também o ranking do desempenho das entidades gestoras por clusters em função da respetiva dimensão. Avalia ainda três aspetos, a solvência económico-financeira, a sustentabilidade da gestão empresarial e a sustentabilidade da prestação do serviço (cumprimento das metas). Face aos resultados, pode recomendar a entrada da entidade gestora num regime de apoio transitório para melhorar a sua eficiência, a cargo de um organismo técnico nacional, que presta assistência técnica e promove a integração dos operadores. Em Portugal já é utilizada a premiação dos melhores desempenhos, mas há ainda espaço significativo para melhorar e criar novos instrumentos, sobretudo nos casos em que o desempenho seja continuadamente inferior ao desejado.
Um quarto desafio é a contribuição regulatória para a melhoria da organização do setor e da governança das entidades gestoras. No Perú é faculdade do regulador supervisionar e sancionar estas entidades em matéria de governo corporativo. É também faculdade do regulador delimitar áreas de prestação de serviço otimizadas, promovendo as agregações. Na Colômbia o regulador tem mesmo a faculdade por lei para liquidação e fusão de entidades gestoras que não cumpram continuadamente determinados níveis de desempenho. Nesse caso a entidade gestora pode ser obrigada a licitar o serviço através de um concurso público aberto, podendo este instrumento ser ainda combinado com o de fusão de entidades gestoras de forma a tornar o concurso mais apelativo. Em Portugal é essencial prosseguir as agregações para a melhoria da organização do setor, aproveitando as economias de escala, e introduzir medidas para a melhoria da governança das entidades gestoras, áreas em que a intervenção regulatória pode ter um papel reforçado.
Um quinto desafio é melhorar a governança dos reguladores, com procedimentos exigentes de eleição dos seus dirigentes, com o apoio de entidades especializadas em recrutamento e independentes do governo, e com mecanismos transparentes de avaliação do desempenho regulatório. Por exemplo, no Chile a nomeação do órgão diretivo do regulador é por concurso público, com pré-seleção de três candidatos e escolha final pelo Presidente da República. O Perú implementou recentemente um processo de avaliação regulatória independente e aprofundado realizado pela OCDE, com a constituição de uma equipa interna no regulador responsável pela implementação das recomendações recebidas. Em Portugal pode ser interessante melhorar os processos de designação das lideranças, aliás aplicáveis para o setor em geral, e introduzir uma prática de auditoria externa especializada e periódica do regulador, fortemente motivadora da reflexão endógena e da melhoria da intervenção regulatória.
Um sexto desafio é a implementação de processos de avaliação do impacto regulatório no setor. No Perú o regulador, com o apoio da OCDE, criou um regulamento com a definição desse processo e um guia para a sua implementação. Tem ainda um procedimento onde identifica, programa e divulga os principais problemas do setor e as possíveis intervenções normativas e regulatórias a realizar no ano seguinte. Em Portugal, também aqui há espaço de progressão através da adoção de melhores práticas de avaliação do impacto regulatório, que verdadeiramente ainda não integrou a cultura do setor.
Um sétimo desafio é fomentar a inovação no setor. Em Inglaterra e no País de Gales o regulador estabeleceu um fundo para promover a capacidade de inovação no setor, promovendo concursos de inovação onde concorrem as entidades gestoras em colaboração com outras entidades. Estes concursos são desenhados com as entidades reguladas através de processos de consulta. Em Portugal a inovação pelas entidades gestoras, em articulação com a academia, empresas, start-ups e outros atores, ainda é pouco incentivada, por exemplo em termos fiscais, havendo espaço de progressão.
Um oitavo desafio é a necessidade crescente de promover a sustentabilidade ambiental e internalizar esses custos através de novos instrumentos regulatórios. O regulador da Costa Rica criou uma tarifa de proteção dos recursos hídricos, como mecanismo complementar às taxas de recursos hídricos. As entidades gestoras podem solicitar a sua aprovação mediante a entrega de um plano quinquenal de investimentos ambientais, o que tem trazido investimentos crescentes neste domínio e uma maior sensibilização da população para a proteção das origens de água. Em Portugal, a questão da proteção das origens está longe de estar resolvida e importa encontrar mecanismos regulatórios mais efetivos para a sua concretização.
Estes são alguns exemplos de práticas regulatórias que podem induzir melhores desempenhos no setor. Importa compreendê-las, debatê-las de forma construtiva e tecnicamente sustentada e ter coragem e liderança para implementar as que se revelem adequadas ao contexto de cada país. A regulação não é estática, tem de procurar continuamente novos instrumentos de intervenção. Os desafios que temos pela frente assim o exigem.