Energia oceânica: Finalmente vamos “cumprir o mar”?

Energia oceânica: Finalmente vamos “cumprir o mar”?

“Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu”

in Mensagem, Fernando Pessoa

 

A partir da consolidação do território continental, com a conquista definitiva da cidade de Faro pelas forças de Afonso III, em 1249, Portugal virou-se para o mar e para além dele. Os descobrimentos portugueses, iniciados com a descoberta das ilhas da Madeira e Porto Santo, em 1418, e que se prolongariam pelos séculos XV a XVII, foram o auge desse desejo e determinação. Desde então, temos vindo paulatinamente a voltar as costas ao mar, reservando-lhe, atualmente, uma função mais recreativa e de conservação do que uma função económica, capaz de transformar a sociedade e de acrescentar valor.

Para ser franco, parece-me que qualquer destas opções é válida. O turismo e a biodiversidade são dois valores importantes a preservar, mas onde o mar funciona mais como pano de fundo. Existem outras atividades, mais intrusivas é certo, que permitem diversificar os produtos e serviços que o mar pode oferecer, em particular o setor das pescas, dos portos e da reparação naval, a pesquisa e prospeção de recursos, os cabos submarinos de comunicações e de energia, entre outros, que podem vir a ter um peso muito significativo na nossa economia.

A opção política tenderá a salvaguardar estas várias vertentes do uso do mar, apesar da RCM n.º 203-A/2019, que aprova o Plano de Situação de Ordenamento do Espaço Marítimo Nacional (PSOEM), começar logo por referir que “o mar é um ativo estratégico que importa valorizar, preservar e ordenar, sendo que a sua riqueza em recursos naturais e posição geoestratégica de Portugal propicia o desenvolvimento de atividades que fomentem uma economia do mar dinâmica e sustentável”.

A transição energética para um modelo energético mais sustentável, menos dependente dos produtos petrolíferos e do carvão, já conseguiu alcançar resultados extraordinários, com os quais ninguém sonharia há três anos: a explosão do fotovoltaico, da produção distribuída e do autoconsumo até às centrais de centenas de megawatt [1]; o encerramento das duas centrais de carvão existentes no país; a revisão da organização e do funcionamento do Sistema Elétrico Nacional; o advento da sociedade do hidrogénio e, finalmente, o interesse crescente na exploração de energia renovável offshore em Portugal, motivado pelo amadurecimento tecnológico.

Este enquadramento, associado à crise que o sistema energético enfrenta, potenciado pelo contexto de guerra, tem impulsionado o desenvolvimento de energias renováveis, em particular aquelas que se podem vir a localizar em espaço marítimo. Efetivamente, a construção das centrais solares ou eólicas descentralizadas e respetivas infraestruturas de interligação tem levantado objeções junto das populações, dos municípios e de outros agentes com responsabilidades na gestão do território, face à pressão e concorrência com outros usos do solo, em particular, relacionados com a conservação e a biodiversidade. Este problema é ainda agravado por outras utilizações intensivas do território, também em franca expansão, como sejam as monoculturas agrícolas, especialmente, o olival, a vinha ou o milho.

As tecnologias offshore oferecem assim uma oportunidade e um espaço de eleição, o espaço marítimo, para o desenvolvimento da sua atividade sem a pressão e a concorrência que existe nas áreas terrestres.

A aposta no eólico offshore, bem como no potencial existente das energias das ondas, terá em Portugal, nas próximas duas décadas, um peso determinante no sucesso da descarbonização do setor energético. O eólico offshore tem vindo a ganhar uma dimensão significativa, em Portugal e noutras regiões da Europa, conduzindo ao seu desenvolvimento e escala e, com isso, à redução dos custos na sua instalação e operação. O potencial nacional para explorar a energias das ondas é reconhecido, mas está numa fase mais embrionária, sendo importante apoiar projetos-piloto de energia das ondas e permitir a sua expansão para novas áreas de desenvolvimento das energias renováveis offshore.

Portugal deve avançar já este ano com os primeiros procedimentos concorrenciais para a instalação de parques eólicos offshore, sem excluir outras modalidades de atribuição de títulos de receção de capacidade associados ao desenvolvimento industrial e à capacidade de absorção da produção elétrica offshore em instalações de consumo eletrointensivas. O objetivo é o de instalar 2 GW de nova capacidade até 2030 e, posteriormente, com a criação de novas áreas no PSOEM para a instalação de renováveis offshore, avançar com novos leilões, com vista à atribuição de mais 8 GW, de forma faseada, até 2030 [2].

O ordenamento do espaço marítimo constitui uma oportunidade e um instrumento fundamental para a criação das condições necessárias para o desenvolvimento do potencial oceânico para a produção de energia e de todo um novo setor de atividade ligado a esse potencial. Os próximos passos implicam a identificação de zonas marítimas adequadas, as necessidades de desenvolvimento compatível das infraestruturas portuárias e pontos para ligação à Rede Nacional de Transporte de Eletricidade.

Portugal reconhece finalmente o potencial das renováveis offshore e ambiciona promover a sua capacidade instalada. Temos de ter a consciência de que tudo isto vai requerer uma elevada concertação de políticas públicas e industriais e eventuais reforços da rede de transporte continental.

Como poderia ter dito Fernando Pessoa: falta cumprir o Mar para se cumprir Portugal.

 


[1] Num total de 2,7 GW instalados e várias dezenas de gigawatts em pipeline.

[2] A maioria desta capacidade adicional será instalada após 2030

 

Texto publicado na edição julho/agosto 2023 do Jornal Água&Ambiente

 

 

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