
Guadiana. A água não se dá: gere-se em conjunto
Dizer não a Espanha quando se fala de recursos hídricos é um risco enorme, mesmo quando as relações entre Portugal e Espanha são excelentes e o direito internacional está a nosso favor.
A água do Guadiana, antes de ser de Portugal ou de Espanha, é dos ecossistemas ribeirinhos. Nós dizemos, e bem, que água é vida, mas se entendêssemos o que dizem as lontras, ou os amieiros, também os ouviríamos dizer que água é vida. Sim, a nossa espécie tem direito a essa água, e a forma como nos organizamos e nos alimentamos criou necessidades próprias e crescentes de água, recurso cada vez mais escasso no sul da Península Ibérica.
"Tenho alguma dificuldade em acompanhar aqueles que falam no desperdício de água nos rios que correm para o mar sem a aproveitarmos."
Tenho alguma dificuldade em acompanhar aqueles que falam no desperdício de água nos rios que correm para o mar sem a aproveitarmos. Nós não a aproveitamos de forma direta, mas sempre que a água corre num rio a caminho do mar, há toda uma vida natural que se faz e que é essencial para a nossa sobrevivência como espécie. Por isso, estamos mesmo a aproveitar essa água indiretamente (e de forma essencial).
Os grandes rios portugueses nascem em Espanha, e todos aqueles que acham que é preciso avançar sobre o país vizinho para rever a convenção (de Albufeira) que regula os usos e os caudais desses rios dizem um grande disparate. É mesmo o cumprimento da convenção por parte de Espanha que permite, ainda que com sobressaltos, que se cumpram os usos do lado português.
Prevista para o Guadiana, há uma nova captação para abastecer o Algarve, a jusante do Alqueva (no Pomarão), que levará água ao sistema do sotavento. É uma boa ideia, tem financiamento do PRR, tem impactes ambientais que estão a ser avaliados e esperemos que seja ambientalmente possível. O que faz falta ao Algarve não são barragens, mas sim água para as barragens que tem. Mas um projeto deste tipo obriga a negociar com Espanha.
"...direi que percebo que os agricultores e o governo de Espanha queiram “pedir” água a Portugal."
Assim, e deixando por contar a história das captações que Espanha tem no Guadiana, direi que percebo que os agricultores e o governo de Espanha queiram “pedir” água a Portugal. E percebo também que Portugal tenha aqui uma posição difícil de explicar internamente se disser sim, mas difícil de gerir com Espanha se disser não.
Para dizer sim, Portugal tem de ter uma garantia. A de que os agricultores espanhóis não vão usar essa água da mesma forma que sempre o fizeram. Na oferta da água não podemos fazer nada. Na procura podemos fazer tudo. Portugueses e espanhóis, e sobretudo os agricultores, por serem os responsáveis da atividade que mais consome este recurso, têm mesmo de ser mais eficientes no seu uso, preparem-se para pagar mais pelo que é escasso, escolherem culturas adaptadas aos seus territórios.
Mas que ninguém diga “água para Espanha, nunca”. Isso foi o que disseram há pouco mais de um ano os agricultores espanhóis da bacia do Douro; não queriam que a água do rio passasse para Portugal, e não vi nenhum português satisfeito com a ideia.
"... vejo com grande preocupação aqueles que em Portugal defendem as autoestradas da água ..."
Aliás, vejo com grande preocupação aqueles que em Portugal defendem as autoestradas da água, ligando, de norte para sul, os nossos rios. Alguns deles são os que se sobressaltam com o transvase Tejo Segura. No dia em que Espanha se lembrar de fazer autoestradas de água, nas nossas nem água haverá para lavar a praça da portagem.
Na União Europeia há mais de 100 000 massas de água, só 40% destas estão em bom estado e 1/3 das bacias hidrográficas europeias são transfronteiriças. Temos de fazer um esforço conjunto para melhorar a qualidade das massas de água (Espanha tem aqui um longo caminho pela frente e bem a podemos acusar de incúria) e perceber que uma bacia hidrográfica estará sempre entre dois festos e um talvegue, não conhecendo quaisquer limites administrativos. Assim, se água não é nossa (da espécie humana) também não é por estar em Portugal que é portuguesa. A água é dos ecossistemas, de todas as espécies que precisam dela (já o dissemos) e da bacia hidrográfica onde corre. Pensar em reservá-la apenas para a espécie humana e num determinado país pode ser um exercício de arrojo de engenharia, mas nada tem de corajoso enquanto decisão política
Sobre a cedência de água do Alqueva, junto-me às posições ponderadas da ZERO (“só com informação completa”) e de José Pedro Salema, presidente da EDIA (“haver há, mas a que for já não volta”).
Estes são dois bons princípios para que se pense na solução para o pedido de Espanha. A solução tem de ser solidária, tem de servir para salvar culturas permanentes e não intensivas e tem de exigir um compromisso por parte de Espanha que vá além do cumprimento das regras da convenção, sobretudo no Tejo, e da captação do Pomarão; não apenas a pensar na maior disponibilidade de água para os humanos, mas para os ecossistemas onde estes vivem, e poucas vezes se lembram disso.