O ordenamento do território em destaque, mas não pelas melhores razões
Foi publicado no dia 30 de dezembro o Decreto-Lei n.º 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT). Aquando da promulgação deste diploma, o Presidente da República afirmou que o mesmo constitui “um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”, o que, apesar de tudo, não impediu a promulgação com o argumento da “intervenção decisiva das assembleias municipais” e “da urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção da habitação”.
Desde esse dia, temos assistido a um “erguer de vozes” contra este diploma - a maior parte delas apresentando argumentos com os quais nos revemos -, mas, curiosamente, todos parecem esquecer que “o grande entorse em matéria de ordenamento e planeamento do território” resultou, inicialmente, não desta alteração ao RJIGT, mas da alteração à Lei 31/2014, de 30 de maio (Lei de Bases) decorrente do Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro - o designado Simplex urbanístico que está agora a fazer, precisamente, um ano - diploma que não só foi objeto de autorização por parte da Assembleia da República, como de promulgação pelo Presidente da República, sem que este, então, se tenha referido a qualquer entorse.
Foi este Simplex urbanístico que, ao alterar a Lei de Bases, veio permitir que a classificação do solo - que sempre foi uma decisão de planeamento (isto é, adotada no âmbito de um procedimento que garante a ponderação dos diversos interesses abrangidos, sejam públicos sejam privados) - possa ser feita por mera “deliberação dos órgãos das autarquias locais, nos termos da lei”; e foi ele que veio alterar o RJIGT, de modo a facilitar/flexibilizar reclassificações de solos rústicos para solos urbanos. O Decreto-Lei n.º 117/2024 aproveita a alteração da Lei de Bases feita pelo anterior Governo e continua a trilhar o caminho anteriormente iniciado de estabelecer vias simplificadas de reclassificação de solos rústicos para solos urbanos.
Sejamos honestos e não apontemos as críticas apenas a este Decreto-Lei, quando a “entorse” começou há quase um ano (...)
Sejamos, portanto, honestos e não apontemos as críticas apenas a este Decreto-Lei, quando a “entorse” começou há quase um ano, ainda que - reconheçamo-lo - este diploma venha agora alargar as possibilidades de reclassificação de solos rústicos para urbanos para efeitos de habitação “de valor moderado”, figura esta que não nos parece de todo merecer este epíteto, por não vermos em que medida permitirá melhorar a acessibilidade à habitação por parte de quem dela necessita.
Os pressupostos, quanto a nós, incorretos em que ambos os diplomas assentam são, precisamente o de que existe uma falta ou carência de solos ou de terrenos livres para atividades económicas e para construção de habitação. Tal não é verdade: mesmo os municípios que já adequaram os seus PDM às novas exigências de classificação dos solos como urbanos (cumprindo os critérios mais rigorosos exigidos após a Lei n.º 31/2014 que levaram a uma diminuição dos perímetros urbanos) continuam a ter, no solo classificado como urbano, folga para acolher aquelas necessidades. O problema não é, assim, de falta de solos urbanos, mas de falta de uma política de solos que garanta que aqueles que estão classificados como urbanos (e que são mais do que suficientes para as necessidades existentes) sejam efetivamente utilizados para os fins previstos e estejam disponíveis no mercado a preços acessíveis.
Esse sempre foi, aliás, o problema do nosso direito do urbanismo: a inexistência de instrumentos que permitam a efetiva operacionalização do que está previsto nos planos, a significar que o problema não se resolve com a previsão de mais solos urbanos, mas com a previsão de uma política de solos eficaz e efetiva, que faça cumprir, quando necessário, a função social da propriedade.
O problema não é de falta de solos urbanos, mas de falta de uma política de solos que garanta que aqueles que estão classificados como urbanos (...) sejam efetivamente utilizados para os fins previstos
Apenas assim conseguiremos manter soluções alinhadas com a evolução operada nas políticas de ordenamento do território dos últimos 25 anos, de contenção dos perímetros, de combate à dispersão e fragmentação urbanas (com os desperdícios associados) e de reabilitação.
Para nós, que trabalhamos nestas áreas há muitos anos, fica a sensação de que as alterações que vão sendo introduzidas nestes regimes há muito consolidados – quantas vezes ditadas por razões conjunturais e para dar resposta a situações especificas - são realizadas sem que se conheça e compreenda a razão de ser destes regimes, em especial a sua evolução, o que acaba por os transformar em verdadeiras “mantas de retalhos”, colocando em causa a sua unidade sistemática e transformando a política de ordenamento do território numa política meramente instrumental de políticas setoriais, quando devia ser ela a estar na base destas.
Vejamos qual o destino deste Decreto-Lei, em especial sabendo que está em marcha um procedimento de apreciação parlamentar ao mesmo que poderá eventualmente mudar o curso dos acontecimentos.