
O papel suporta tudo, até água...
1. Costuma-se dizer que o papel suporta tudo, e eu acrescentaria: até suporta água. Vem isto a propósito da apresentação no dia 9 de março deste ano, com toda a pompa e circunstância, da estratégia nacional para a gestão da água, denominada “Água que Une”, que parece estar a montante da revisão do Plano Nacional da Água e da atualização da estratégia do Regadio Público. Todos os contributos para o debate e para a discussão sobre os Recursos Hídricos são importantes, mesmo que venham da parte de um Governo cuja onda rebentou na praia dois dias depois.
Sem pôr em causa a qualidade técnica do grupo de trabalho que esteve envolvido na sua preparação, a quem eu reconheço competências na matéria e por quem eu tenho o maior respeito, é sobretudo a componente política desta apresentação que eu gostaria de sublinhar, até porque o que se conhece, por enquanto, é mais um “PowerPoint”, faltando conhecer o conteúdo concreto e pormenorizado da estratégia para se poder fazer um juízo mais completo sobre a matéria.
Mas ainda assim, o que está visível à superfície deixa-me algumas preocupações, sendo a principal as questões relacionadas com o financiamento, em que se conjugam duas linhas de força: o que tem financiamento concreto indicado não traz significativamente nada de novo e é sobretudo o somar de iniciativas e projetos que já estavam previstos nos diversos instrumentos de financiamento; o que é novo e pode ser relevante para o futuro remete-nos para possíveis fontes a determinar, sabendo-se que, nesta matéria, as fontes estão mais para o lado da escassez do que da abundância.
Dou exemplos: os investimentos estimados no âmbito do programa de ação para a redução de perdas de água (para mim, uma das prioridades), na parte que se refere ao Alentejo, para a reabilitação e otimização de ativos, o valor indicado é de 150 milhões de euros, que até fica abaixo do valor de despesa nacional previsto no Alentejo 2030. Mesmo quase ao lado da localidade onde resido, o alteamento da Barragem do Pedrogão tem um valor de 20 milhões de euros, valor esse a determinar. E fica ainda uma dúvida de grande importância para parte significativa do Alentejo. O valor indicado para o Programa do Reforço da Eficiência e de segurança dos sistemas explorados pelas Águas Públicas do Alentejo é de 140 milhões. A fonte possível de financiamento referida é o orçamento próprio da entidade, o que colocaria em risco o funcionamento e a viabilidade da parceria, que necessita de apoio em termos de financiamento comunitário, sob pena de não poder cumprir o seu papel ou então ter de aplicar uma tarifa de todo impraticável, dados os custos do sistema devido à sua dispersão geográfica e baixa densidade populacional.
(...) a questão essencial do setor da água, do saneamento e também dos resíduos não está na subida das tarifas
Espero que em breve sejam divulgados todos os documentos onde conste o detalhe das medidas preconizadas, a sua fundamentação e uma clarificação sobre as fontes de financiamento. E também que seja lançado um amplo debate sobre a matéria, sobre as propostas apresentadas e, também, ser percebida qual é a ligação que este aspeto da política setorial tem com outras componentes de um processo de desenvolvimento que Portugal necessita, sendo relevante o papel da agricultura enquanto instrumento de afirmação da soberania e segurança alimentar e que os recursos hídricos devem ser um instrumento gerido com eficiência e ao serviço de todos.
2. Duas observações sobre dois aspetos concretos com incidência na gestão da água:
2.1. Primeiro, lamentar que a apreciação parlamentar que deveria resultar em cessão de vigência do decreto-lei que alterou os Estatutos da ERSAR reforçando os seus poderes tenha ficado em banho-maria, passando agora para a próxima legislatura, tendo-se perdido na discussão na especialidade da lei do orçamento do Estado para 2025 a ocasião para reverter esta medida que, a entrar em vigor em pleno, é intrusiva da autonomia local e não contribuirá em nada para a melhoria da gestão do setor, colocando o enfoque onde não se deve colocar, que é na vertente tarifária, quando a questão essencial está na aposta na eficiência hídrica.
2.2. Segundo, insistir que a questão essencial do setor da água, do saneamento e também dos resíduos não está na subida das tarifas e que quando se analisa o que diz o regime financeiro das autarquias locais (a lei n.º 73/2013) não podemos referir apenas que os “preços não devem ser inferiores aos custos”, que consta no número 1 do artigo 21, mas também o que refere o número 2, de que “os custos suportados são medidos em cenário de eficiência produtiva”. Ora, o setor é considerado como de monopólio natural e sobretudo de capital-intensivo, caraterizando-se pela rigidez da estrutura de gastos, onde são significativos os custos irreversíveis. Os gastos fixos são, por isso, elevados e, nos casos onde são necessárias infraestruturas redundantes, temos situações de ociosidade. Logo esta questão dos preços tem muito que se lhe diga e tem de ter um exame mais atento, o que passa também pela aplicação dos 3 T na lógica do financiamento: tarifas, subsídios à exploração e subsídios ao investimento.