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Os Quatro Mandamentos da Subsidiação
Na recentíssima 19.ª Expo Conferência da Água tive o privilégio de participar no painel ‘Financiar a água sob um novo paradigma’. Numa intervenção de um dos participantes foi dito algo que me deixou a pensar: “No limite, a subsidiação devia acabar”.
Será possível? Não creio, nem que seja possível, nem que seja socialmente aceitável. Creio sim que, tal como está a ser atribuída, a subsidiação devia acabar.
Creio também que há quatro “mandamentos” – ou verdades místicas – na subsidiação dos serviços de abastecimento de água e saneamento:
I. Todas a Entidades Gestoras têm tarifas subsidiadas
Em Portugal, e praticamente em todo o mundo, as tarifas gozam de alguma forma de subsidiação.
Todas as Entidades Gestoras (EG) servidas por Sistemas Multimunicipais da AdP-Águas de Portugal beneficiam de tarifas em “alta” subsidiadas por fundos comunitários. Só aqui, encontra-se logo 80% do País. Quanto às restantes EG, a grande maioria (se não mesmo a totalidade) também candidataram as suas ETARs e/ou outras infraestruturas aos Fundos Comunitários.
A quase totalidade das EG (com apenas duas exceções) tem implementado um sistema de tarifas volumétricas por escalões, com o primeiro escalão a ser subsidiado pelos escalões mais elevados e, eventualmente, pelos consumidores não domésticos. Ou seja, praticamente todos os consumidores domésticos do país gozam de uma tarifa subsidiada no primeiro escalão.
Todas as tarifas de água beneficiam da taxa reduzida de IVA, de 6%. No saneamento, as taxas de IVA são de 0 ou de 6%, consoante o modelo de gestão da EG, fruto de um regime bicéfalo imposto pela Autoridade Tributária.
Até os consumidores das concessões atribuídas a operadores privados gozam de tarifas bonificadas. Para além das razões acima apontadas, no arranque das concessões, as infraestruturas concessionadas foram cedidas pelos municípios, tendo como contrapartida rendas inferiores ao seu valor líquido contabilístico, pelo que, apenas uma parte do investimento está a ser repercutido nos tarifários praticados.
E finalmente, as tarifas não cobrem a totalidade dos custos em mais de 100 EG, sendo os orçamentos municipais a suportar a diferença entre os rendimentos tarifários e os gastos reais.
Em resumo, por uma razão ou por outra, todas as tarifas gozam de alguma forma de subsidiação.
II. Subsídios há muitos, e para todos os gostos
Tomemos o exemplo da Europa. A disparidade de níveis de rendimento das famílias (entre países e entre regiões do mesmo país), a disparidade de índices de pobreza e as diferenças de tarifas entre EG são tantas que cada governo, cada município, cada EG tem uma realidade diferente.
Aliás, o próprio conceito de “Subsídio” é diferente do conceito de “Tarifa Social” ou de “Desconto no preço”.
Os subsídios ocorrem quando o cliente paga menos por um produto ou serviço do que o custo real assumido pelo prestador de serviços, deixando para um terceiro (por exemplo, governo, outros utilizadores ou gerações futuras) a responsabilidade por cobrir a diferença do custo.
Os “Subsídios” são muitas vezes cegos em relação ao estrato social dos beneficiários, abrangendo indistintamente ricos e pobres.
Em Portugal continental, 207 municípios já têm implementado algum tipo de descontos ou tarifário social. Compreender estes conceitos é fundamental para direcionar corretamente os subsídios para as famílias que realmente necessitam de acesso a tarifas bonificadas
As "tarifas sociais" são especificamente concebidas para os grupos vulneráveis e marginalizados, como os pobres ou os pensionistas.
Os "descontos" são benefícios concedidos sob a forma de descontos nas faturas, descontos nas tarifas ou um determinado volume de água gratuito.
Em Portugal continental, 207 municípios já têm implementado algum tipo de descontos ou tarifário social.
Compreender estes conceitos é fundamental para direcionar corretamente os subsídios para as famílias que realmente necessitam de acesso a tarifas bonificadas.
III. Muitos subsídios são mal direcionados
Uma interessante publicação do Banco Mundial refere mais ou menos o seguinte (a tradução é minha): “Tradicionalmente, os subsídios ao abastecimento de água e saneamento têm abrangido toda a população. Os fundos públicos fluem diretamente para as EGs, cobrindo custos de investimento e custos operacionais. À primeira vista, parece justo - todos beneficiam disso, certo? Errado.
Este tipo de subsídios beneficia todos os consumidores, sem ter em conta os seus rendimentos, uma vez que não distinguem entre famílias que podem, ou não, pagar os serviços. Esta abordagem tem outro efeito perverso e não intencional. Os subsídios podem desincentivar as EG de melhorar a eficiência ou expandir seus serviços, uma vez que recebem sempre subsídios, independentemente do número de habitações servidas ou do volume de água faturado.”
Nem de propósito, estas afirmações aplicam-se literalmente ao caso de Portugal. Se é verdade que os subsídios foram muito importantes para infraestruturar o país há 20 ou 30 anos atrás, é inexplicável como é que ainda há mais de 100 EG que não cobrem os custos e são cronicamente subsidiadas.
Se é verdade que os subsídios foram muito importantes para infraestruturar o país há 20 ou 30 anos atrás, é inexplicável como é que ainda há mais de 100 EG que não cobrem os custos e são cronicamente subsidiadas
IV. O percurso saudável vai na direção da sustentabilidade e da redução da subsidiação
Ultimamente, têm-se falado muito do fim dos fundos comunitários para o sector da água. Como vamos nós sobreviver após 30 anos consecutivos de ajudas anuais?
Não vai ser fácil. Aqueles fundos tinham (e por enquanto ainda têm) um efeito colateral de direcionar as prioridades de investimento do setor. Sem estes fundos, será que cada município, cada EG, vai estabelecer as suas próprias prioridades? Deixará de existir uma estratégia de médio-longo prazo para o setor? Espero que não. Julgo que os próximos governos depressa perceberão que é necessário criar estímulos – incentivos – ao investimento em renovação e á eficiência das EG. Esses incentivos não têm de ser concedidos através de subsídios a fundo perdido. Há muitas outras formas de criar incentivos à eficiência e ao investimento.
É certo que as tarifas terão de aumentar, mas esses aumentos devem ser acompanhados de políticas sociais de proteção das famílias carenciadas. Um bom regime de tarifas sociais, acompanhado de incentivos à eficiência e ao investimento corretamente estruturados, são certamente mais eficazes do que a atual forma de subsidiação do setor.