Valorização energética de resíduos - cai mais um tabu?

Valorização energética de resíduos - cai mais um tabu?

Na área ambiental, temos tido, nos últimos 50 anos, quatro tabus. São eles: a reutilização das águas residuais, a dessalinização, a valorização energética de resíduos e o nuclear.

Pelas mais variadas razões, estas tecnologias foram sendo relegadas ou esquecidas. A reutilização porque reduz a venda da água primária, a dessalinização porque é para outras latitudes, a valorização energética e a nuclear porque são politicamente incorretas.

A pressão europeia para que se reutilizem as águas residuais (ApR) pôs fim ao primeiro tabu. A percentagem inferior a 2% de ApR verificada no país, a UE não aceita que as águas residuais reutilizadas nas ETAR contem para a estatística, leva a que Portugal se deixe de iniciativas envergonhadas e implemente um programa de ApR tendente a alcançar 30%.

Mais um episódio de seca em Portugal, sempre recorrente, levou à queda do segundo tabu. Embora o país tenha construído uma dessalinizadora em 1980, em Porto Santo, até há pouco desconhecida fora da RAM, esta medida para combater a seca foi esquecida e menorizada. A pressão da região do Algarve para resolver a sistemática falta de água tirou o tapete aos Adamastores e lançou o concurso para a sua construção. Outros municípios têm em mente construir dessalinizadoras como medida de segurança em caso de colapso da distribuição principal de água doce.

E temos o terceiro tabu, a valorização energética de resíduos através de centrais com produção de energia térmica e elétrica (CVE).

No Continente, após a construção das duas CVE na década de 90 para servir as regiões de Lisboa e Porto, nunca mais se construiu outra. Apesar de funcionarem corretamente, das suas emissões gasosas cumprirem os limites de emissão e dos produtos finais serem inferiores a 20%, nenhum daqueles que, aquando da construção, pressagiou os piores cenários “deu o braço a torcer”. A pressão contra as CVE manteve-se e passou a ser justificada pelo facto de ir prejudicar a valorização de resíduos.

Esta justificação não tem cabimento pois que, ao analisar-se o gráfico da OCDE sobre as operações de tratamento e valorização de resíduos, verifica-se que os países que mais valorizam energeticamente os resíduos são, também, os que maiores valorizações apresentam e menores descargas em aterro têm (em %).

Operações de tratamento de resíduos em diversos países, OCDE, 2020

Durante anos, os diversos PERSU, incluindo o último (2030), negaram a evidência, optando pela fantasia. Reduziam a produção de resíduos, estabeleciam taxas de recolha irreais e valorizações impossíveis para concluir que não eram necessários nem mais aterros, nem mais CVE.

Durante anos, os diversos PERSU, incluindo o último (2030), (...) reduziam a produção de resíduos, estabeleciam taxas de recolha irreais e valorizações impossíveis para concluir que não eram necessários nem mais aterros, nem mais CVE

Mas numas contas rápidas concluímos que não é assim. Se a % de biorresíduos for de 40%, se se recolher 70% e se na CVO se tiver 20% de refugo, a fração resto do tratamento é de 5,6%. Se se tiver 35% de MM, se recolher 80% e se valorizar outros 90%, a fração resto é de 2,8%. Somando estas frações resto aos RI, 25%, e ao não valorizado, 19%, obtém-se 52,4%. Se as CVE existentes tratarem 20%, e se puder enviar 10% para aterro, sobram 22,4% mais o refugo das CVE.

E é com estas contas, e com a percentagem de 59% de descarga em aterro em 2023, assim como o esgotamento dos aterros existentes, que os alarmes começaram a tocar.

Mais é preciso ouvi-los, e julgo que o atual Secretário de Estado do Ambiente, Emídio Sousa, os ouviu. Na abertura do 18.º Fórum Resíduos, iniciativa integrada na Semana Ambiente 2024, organizada pelo Jornal Água&Ambiente, foi bem claro: deveremos pensar em todas as soluções possíveis, não pondo de parte nenhuma delas, como seja a valorização energética dos resíduos. Com estas palavras, o Secretário de Estado fez cair o terceiro tabu.

O Secretário de Estado reiterou mais tarde, num encontro promovido pela AEPSA, que o Governo pretende apostar na valorização energética como uma das principais soluções para o futuro da gestão de resíduos em Portugal. Os resíduos sem potencial de reciclagem devem ser transformados em energia, seguindo exemplos bem-sucedidos de outros países europeus.

Estudando-se a solução CVE sem preconceitos, cedo se irá concluir que há que ampliar a capacidade instalada de valorização energética. Num estudo realizado em 2021, pela ECOserviços, para avaliar a capacidade das CVE existentes no continente, concluiu-se que há que duplicar a capacidade atual de um milhão de toneladas anuais, caso se queira limitar a descarga de resíduos em aterro a 10%, mesmo tomando como valorizações e taxas de captura as indicadas na Diretiva Europeia.  

Estudando-se a solução CVE sem preconceitos, cedo se irá concluir que há que ampliar a capacidade instalada de valorização energética

Esta duplicação de capacidade poderá ser conseguida através de uma das três seguintes alternativas:

  • mantendo duas CVE, haverá que duplicar a capacidade da CVE da VALORSUL e ampliar a CVE da LIPOR em 135%;
  • construindo uma nova CVE no Algarve para a fração resto e para o excedente de 10% em aterro com a capacidade de 240 000 toneladas anuais; ampliando a CVE da VALORSUL em 63% para continuar a receber a Região de LVT e parte da Região Centro; ampliando a CVE da LIPOR em 135% para continuar a receber a Região Norte e parte da Região Centro;
  • construindo mais duas CVE, uma no Algarve e outra na Região Centro, respetivamente, com as capacidades anuais de 240 000 t e 280 000 t; ampliando a CVE da VALORSUL em 50% e ampliando a CVE da LIPOR em 90%.

Findos três tabus, mantém-se ainda o quarto, o nuclear como solução energética. O seu fim será tema de um longínquo artigo.

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